De fala pausada e precisão técnica, o imaginável estresse de deter o cargo de meteorologista em uma instituição de referência – e em face de uma crise climática sem precedentes ocorrendo em seu país – não abalou a conduta assertiva do cientista Bruno Kabke Bainy, que recebeu o Hora Campinas para uma conversa esclarecedora acerca da gravidade da tragédia rio-grandense e seus desdobramentos.
O meteorologista do Cepagri (Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura), instituto de pesquisa ligado à Unicamp, aproveitou de antemão os primeiros minutos da entrevista concedida ao Hora Campinas para listar os fatores meteorológicos que levaram ao evento extremo no Sul.
“Primeiro, temos um canal de umidade que vem da região amazônica, transportando calor e vapor d’água. Aliado a isso, a superfície do Sul do Brasil é uma área de baixa pressão atmosférica, contribuindo para que as nuvens de chuva do canal que chegam se concentrem nesse local. Então, os fortes ventos na altura da troposfera – a camada mais baixa da atmosfera -, característica do relevo sulista, intensificam a gravidade das chuvas, e, por fim, o evento se prolonga porque as frentes frias polares, que naturalmente acometem a região, não se dissipam devido ao bloqueio atmosférico das ondas de calor presentes no Centro-Oeste e Sudeste brasileiro neste momento, mantendo, assim, o padrão de chuvas que causam a tragédia”, explica o especialista.
Bruno ainda indica a influência nem sempre comentada do El Niño, fenômeno natural cíclico causado pelo aquecimento anormal das águas do Oceano Pacífico, que altera a distribuição de umidade e calor no planeta.
“O El Niño contribui para anormalidades climáticas ao redor do mundo, e sua influência no Sul do Brasil está em aumentar a ocorrência das chuvas, efeito que se estende desde o ano passado, quando vimos também um excesso de precipitação na região”, adiciona.
Mesmo que algumas dessas condições não possam ser controladas, a “pegada” humana no desastre é inegável para os especialistas – e não apenas como causadora das emissões dos gases do efeito estufa, que normalmente vemos nos alertas.
“Eventos extremos sempre ocorreram no clima da Terra, haja vista as enchentes registradas em Porto Alegre (RS) em 1941, época em que o impacto das mudanças climáticas ainda não era avassalador. No entanto, a falta de estrutura nas cidades para conter as extremidades do clima mesmo após diversos episódios, planos de urbanização desatualizados quanto às mudanças climáticas e a falta de manutenção nas defesas são fatores preponderantes que elevam a gravidade de eventos que, na maioria das vezes, poderiam ser muito menos prejudiciais”, complementa Bruno.
A possibilidade de contenção da destruição foi um tema salientado pelo meteorologista.
Segundo ele, no caso do Rio Grande do Sul, muitas pessoas inevitavelmente ficariam desabrigadas com as chuvas intensas nesta época do ano por morarem em áreas de risco, mas que os números de mortos e desaparecidos seriam muito menores caso um trabalho de prevenção tivesse sido feito quando houve o alerta dos cientistas para a possibilidade das enchentes.
“Nós esperamos que a tragédia no Rio Grande do Sul não seja esquecida e que propulsione mudanças estruturais, com projetos pilotos em cidades de todo o Brasil que minimizem os prejuízos desses eventos nas esferas social, econômica e ambiental, porque serão mais frequentes a partir de agora – ainda mais em um país continental e com ecossistemas tão diversos como o Brasil”, acentua o meteorologista.
Segundo Bruno, há projeções que indicam que o nível do Guaíba só deve baixar para o aceitável no final de maio.
A partir deste ponto, ainda haverá todo um trabalho de reconstrução do estado gaúcho que deve se prolongar por décadas, estima. Um aparato público preparado, com planos de contingência, políticas ambientais na pauta principal e métodos bem definidos para lidar com crises é a nova realidade da gestão pública.
Eventos extremos, a nova realidade
Com a chegada definitiva das mudanças climáticas, o assombro que temos sentido ao presenciar desequilíbrios nas temperaturas e sazonalidades do clima, em profusões de dias quentes e frios embaralhados em estações do ano já pouco definidas, é um prólogo que não poderia ser mais verdadeiro, confirma o cientista.
“Conforme vem sido debatido nos paineis intergovernamentais, hoje já se assume que as mudanças climáticas são irreversíveis. É comprovado que quanto maior for o aquecimento global, maior serão os impactos. O trabalho gira em torno de manter as alterações no menor grau possível, e garantir que as soluções sustentáveis sejam implementadas tanto no âmbito pessoal com mudanças de hábito, quanto no âmbito coletivo com leis para as indústrias e reestruturações urbanas”, argumenta Bruno.
Sendo o alerta para as mudanças do clima uma luta inglória, que produz inimigos e perseguidores, Bruno confirma que pode ser um desafio praticar ciência de modo propositivo, onde a exposição e os desenlaces políticos estão sempre presentes.
“É importante que os cientistas sejam atuantes na comunidade e estabeleçam um diálogo constante com a sociedade civil. Há resistência e acusações, mas a tarefa do profissional da ciência é justamente oferecer à sociedade um maior entendimento a respeito de fenômenos complexos. As ações de extensão são fundamentais”, destaca.
Bruno, gaúcho e cientista
Natural de Pelotas, no Rio Grande do Sul, Bruno respondeu a respeito da angústia de ver sua terra natal, onde cresceu e trilhou sua trajetória acadêmica, sofrendo consequências tão devastadoras. Ele conta que amigos próximos perderam bens, que alguns de seus familiares, mesmo que não atingidos diretamente, estão em intensa preocupação, e que pontos da cidade gaúcha, que outrora despertavam tranquilidade por abrigarem a vida cotidiana, como parques e ruas, estão agora irreconhecíveis devido à desfiguração causada pelas inundações.
Ainda assim, o que o meteorologista decide pontuar é o trabalho voluntário exercido pelos cidadãos que se prontificaram a atuar na linha de frente da contenção ao desastre.
“Tenho amigos que não foram afetados, mas que estão trabalhando em abrigos, no acolhimento de pessoas, e no recebimento e distribuição de materiais”, finaliza.
Por fim, trazendo o tema à realidade campineira, Bruno foi questionado sobre os fatores que têm causado os focos de incêndio na região nos últimos dias e como reduzir suas ocorrências.
“Temos visto uma sequência de semanas sem precipitação e uma sequência de meses com chuvas abaixo da média. Essa é uma condição atmosférica favorável para que no momento em que há descarte de bitucas em beiras de estrada, entulhos em terrenos baldios e queima de lixos, os focos de incêndio comecem facilmente e se propaguem, levando a uma piora na qualidade do ar, prejudicando a saúde e o bem-estar da população e conduzindo até a queimadas de maiores proporções que podem, inclusive, ameaçar a vida das pessoas”, explica.
O especialista ressalta a importância do descarte correto de lixo e do uso racional da água em tempos de seca.
VEJA ABAIXO A ENTREVISTA COMPLETA