Pode-se dizer que tudo começou em novembro do ano passado, oito meses após a despedida oficial do Skank dos palcos, quando Samuel Rosa teve o privilégio de assistir a um show especial, surpreendente e intimista de Paul McCartney para uma plateia de menos de 500 pessoas, no Clube do Choro, em Brasília, durante a última turnê do consagrado artista britânico pelo Brasil.
Naquela oportunidade única e histórica, testemunhar de perto o grande ídolo tocando ao piano “Hey Jude”, sucesso antigo de 1968 que o ex-Beatle segue mantendo em suas apresentações, serviu como inspiração e norte para o cantor e compositor mineiro, fã de carteirinha do antigo e lendário grupo de Liverpool, que revolucionou a música e teve imensurável influência em todo o planeta.
“Eu brinco que o Paul mandou por telepatia para mim: ‘Samuel, não inventa, faça o que você sabe fazer’”, diz. Foi a partir daquele exato momento diante de uma das maiores lendas vivas do rock que Samuel Rosa estabeleceu a sonoridade de “Rosa”, o tão aguardado primeiro álbum solo do ex-vocalista e guitarrista do Skank, mantendo traços que fizeram sua antiga banda trilhar caminho tão bem-sucedido durante três décadas.
Da mesma forma que, há mais de 50 anos, o venerado artista britânico começou a carreira solo com um disco que levava o seu sobrenome, “McCartney” (1970), o ilustre cantor e compositor mineiro iniciou essa nova fase profissional batizando seu álbum de estreia com a segunda metade de seu nome artístico: “Rosa”.
Não foi uma decisão fácil para Samuel Rosa colocar ponto final na história do Skank, um lugar confortável e seguro, mas o músico mineiro decidiu que havia chegado a hora da separação para partir rumo a novos desafios, quase como se estivesse ouvindo o conselho presente na canção “Maria, Maria”, de seu outro grande ídolo Milton Nascimento: “É preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre“.
Com muita garra e determinação, Samuel Rosa resolveu inaugurar uma nova etapa na carreira, mas agora com o bônus de carregar os louros de uma obra celebrada e um estilo de compor, cantar e tocar que virou uma grife, uma assinatura personalizada, referência quando o assunto é música pop.
“Minha marca é meu patrimônio”, define Samuel Rosa. E essa marca registrada, tão reverenciada e consolidada na história da música brasileira, dá o tom do disco solo de estreia do cantor, “Rosa”.
Com 10 faixas inéditas, o novo disco “Rosa” foi lançado oficialmente na última quinta-feira (27) e está disponível em todas as plataformas digitais. Mídias físicas ainda chegarão ao mercado. Todas as canções foram compostas por Samuel Rosa, sendo quatro composições próprias de letra e música, e outras seis fruto de parcerias.
O título do disco é autorreferencial mesmo, como uma autoafirmação. A ideia é dar justamente continuidade ao legado, sem criar uma ruptura, para demarcar esse rito de passagem. “Eu não queria agora buscar compulsivamente fazer algo que eu nunca fiz. Quero exercer o que eu sou”, afirma Samuel Rosa. E o músico fez o que ele sabe fazer. “Eu quis soar eu mesmo, naturalmente, sem querer fazer um disco pretensioso. Deixei que o novo aparecesse de forma espontânea”, explica.
Processo de composição
Ouvir as 10 faixas do álbum “Rosa” é constatar como a composição de Samuel Rosa moldou o estilo do Skank como o conhecemos ao longo de mais de 30 anos, flertando com vários gêneros musicais, mas tendo o pop como bússola.
“Rosa” foi feito de forma imersiva, intensa e orgânica, com menos máquina e mais banda tocando, inclusive quando a bateria eletrônica entra em algumas faixas. É também um disco mais brasileiro, com uma forte atmosfera musical que remete a Erasmo Carlos e Jorge Ben Jor, influências de Samuel, e a elementos bossanovistas. Tudo embalado no seu universo popular repleto de nuances.
Já as letras, que trazem vivências do próprio compositor, enveredam-se pelo universo do amor, abordando relações em suas várias vertentes. É uma obra ensolarada, mesmo tratando de temas mais espinhosos dos relacionamentos.
Com exceção da faixa “Rio Dentro do Mar”, composta por Samuel no final da pandemia de Covid-19, em 2022, essa safra de canções inéditas feitas especialmente para “Rosa” nasceu de um processo peculiar desenvolvido pelo músico.
O processo de composição de Samuel Rosa fluiu mais rápido do que ele mesmo esperava. Entre janeiro e fevereiro deste ano, o compositor mineiro passou a se isolar no quarto da sua filha, em Belo Horizonte. Ali, ele fazia o que chama de “composição induzida”, ao longo de três a quatro horas, sempre no período da manhã. Depois do almoço, ele partia para o estúdio, onde encontrava os integrantes de sua nova banda, formada por Doca Rolim (violão e guitarra), Alexandre Mourão (contrabaixo), Pedro Kremer (teclados) e Marcelo Dai (bateria e percussão).
A dinâmica era a mesma em qualquer banda: Samuel apresentava aos músicos o que ele havia composto e os demais davam suas sugestões e ponderações, como “coprodutores”. A diferença é que agora a palavra final era dele. Nesses momentos, o compositor vivia uma dicotomia: ao mesmo tempo que almejava essa liberdade de decisão, ele sentia o peso de ter a última palavra. Ou, como ele mesmo brinca, olhava para os lados e via que era o último da fila, sem ninguém depois dele para opinar.
Os ensaios começaram no estúdio da Associação Querubins, uma entidade sem fins lucrativos dedicada ao desenvolvimento de crianças e jovens por meio da arte da cultura e do esporte, em Belo Horizonte. As gravações aconteceram no Estúdio Sonastério, instalado em meio a um cenário bucólico e com vista privilegiada para montanhas próximas à capital mineira. Samuel Rosa divide a produção de “Rosa” com outro velho parceiro, o engenheiro de áudio e produtor musical Renato Cipriano.
“Era disciplina mesmo, eu me comprometi a chegar todos os dias com uma música nova de tarde e mostrar para banda, ainda que fosse ruim, boa, média, sem julgamentos”, relata Samuel Rosa, Samuel que chegou a mostrar 20 canções para sua banda, mas o número acabou reduzido pela metade e apenas 10 entraram no novo disco.
Integrantes de sua nova banda, Doca Rolim e Alexandre Mourão são antigos companheiros de música: o primeiro, guitarrista, acompanhava o Skank, enquanto o segundo, contrabaixista, estava com Samuel na primeira banda de sua vida.
Pedro Kremer, por sua vez, é conhecido tecladista da banda gaúcha Cachorro Grande. Por outro lado, Marcelo Dai é um talentoso baterista da nova geração, apresentado a Samuel por seu filho Juliano. O álbum conta ainda com Daniel Guedes na percussão das faixas “Flores da Rua”, “Me Dê Você” e “Bela Amiga”.
A sinergia e a troca com sua nova banda funcionaram muito bem. Samuel Rosa está feliz com essa formação, que mescla músicos novos e mais velhos, e com a ideia de ir para a estrada com ela, levando a nova turnê, a partir do segundo semestre deste ano.
Neste segundo semestre, Campinas será um dos destinos da nova turnê de Samuel Rosa, que se apresenta na cidade junto com os Paralamas do Sucesso no dia 20 de novembro (quarta-feira), feriado da Consciência Negra, no Royal Palm Hall. Para adquirir ingressos, acesse este link: https://www.icones.com.br/evento/292053-samuel-rosa-e-os-paralamas-do-sucesso
O single “Segue o Jogo”
Oitava faixa do disco “Rosa”, “Segue o Jogo” (Samuel Rosa) chegou ao streaming no dia 7 de junho, como o primeiro single do novo trabalho. A canção trata sobre fim de relacionamento, mas tratado com certa leveza: cada um segue sua vida, sabendo que o que fica é a lembrança de um amor que foi bom enquanto durou. “Você pra um lado / Eu pro outro / Tá tudo certo / Segue o jogo”, canta Samuel no refrão.
“Eu não fiz a canção especificamente para algum caso, fiz para coisas que vivi. Vejo nesses rompimentos o quanto de culpa que carregam as pessoas que saem de uma relação e as que ficam, também”, pondera Samuel.
Nessa faixa, Samuel Rosa retoma o acorde de sétima maior, recurso usado por ele há tempos, inspirado na Bossa Nova e em artistas consagrados como Marcos Valle e Sérgio Mendes, dando à canção um tom de leveza. Por isso, “Segue o Jogo” estabelece uma tênue ligação com outras obras compostas por Samuel anteriormente.
Dentro do repertório do disco “Rosa”, “Segue o Jogo” está espelhada com a canção “Não Tenha Dó” (Samuel Rosa). As duas faixas falam sobre o desamor, mas diferentemente de “Segue o Jogo”, o eu-lírico de “Não Tenha Dó” ainda carrega a dor da separação. “Você bem que acostumou / Com o meu implorar / Você disfarça, mas gostou / Do meu sofrer”, traz o refrão.
As duas canções têm temas parecidos, como se fossem capítulos do mesmo livro. “‘Não Tenha Dó’ é outra bossinha também, mas já é mais MPB mesmo”, conceitua Samuel. Essa faixa ganha ainda um clima meio sessentista graças ao arranjo de cordas do canadense Owen Pallett, que trabalhou com bandas internacionais importantes como Arcade Fire, Duran Duran e R.E.M.
“Eu adoro The Last Shadow Puppets, um projeto do Miles Kane com Alex Turner, do Arctic Monkeys. Eles têm dois discos e o som, principalmente do primeiro álbum, é bem retrô, lembra trilha dos anos 60, misturado com rock. Pedi para que ele [Owen Pallet] fizesse um The Last Shadow of Puppets tropical”, revela Samuel Rosa. Owen Pallett assina os arranjos de cordas também de “Palma da Mão” e “Rio Dentro do Mar”, outras duas canções do álbum.
“Rio Dentro do Mar” é uma metáfora que nasceu de uma percepção que Samuel teve durante a pandemia. Frequentando mais o litoral paulista, ele passou a prestar atenção no mar e viu que as correntes que se formam nele se parecem com rios dentro do mar. Coincidência ou não, “Rio Dentro do Mar” remete à sonoridade de “Dois Rios”, sucesso do disco “Cosmotron” (2003).
Além dos arranjos, “Rio Dentro do Mar” se conecta à “Palma da Mão” pelo tema que permeia ambas: o início de relacionamento de Samuel com a jornalista Laura Sarkovas, mãe de sua filha recém-nascida, com ela morando em São Paulo e ele, em Belo Horizonte, além da distância imposta pelas viagens do músico em turnê.
“Ciranda Seca” (Samuel Rosa / Pedro Kremer / Rodrigo Leão) foi feita para a personagem Dinorah (Alice Carvalho), da série “Cangaço Novo”, mas também faz uma ode à mulher brasileira, guerreira e empoderada. A canção se encaixa com perfeição na trilha sonora do sertão nordestino, mas bem que poderia representar o sertão mineiro de Guimarães Rosa.
A deliciosa “Bela Amiga” (Samuel Rosa / Carlos Rennó) traz um toque de lascividade da letra de Rennó, unida à música de Samuel, numa parceria que nasceu mais recentemente. “Bela Amiga” faz dupla com “Aquela Hora” (Samuel Rosa / Rodrigo Leão), duas músicas mais indie rock, mas que também têm uma dose de brasilidade. A primeira trata de uma amizade que poderia virar algo a mais, enquanto a segunda da separação de um pai e um filho, que decide se emancipar e sair de casa.
A arte da capa do álbum “Rosa”, de autoria do artista visual paulista Stephan Doitschinoff, traz diversos elementos referentes às músicas do repertório.
Outra parceria com Rennó, “Me Dê Você” (Samuel Rosa / Carlos Rennó) evoca os primórdios do Skank, mais especificamente o segundo disco “Calango” (1994), embora “Rosa” seja menos eletrônico.
Com uma letra romântica, “Tudo Agora” (Samuel Rosa/Rodrigo Leão) é um reggae soul que, no início, caminhava para se tornar um reggae nos moldes já conhecidos dos tempos de Skank, mas Samuel mudou o percurso. “Aí foi para esse lado mais da batida do rap, se me permite ousadia. Ficou mais soul, pegou um tempero mais black music, com uma batida mais moderna”, descreve.
Também sobre o amor, a ensolarada “Flores da Rua” (Samuel/João Ferreira) guarda uma conexão com “Ainda Gosto Dela”, do álbum “Estandarte” (2008), com pitadas de rock dos anos 80 e beats, e vocação para ganhar versão remix e tocar nas pistas.
Destaque também para o recurso da harmonia vocal, que surge sutilmente nos backing vocals de Samuel, Marcelo Dai, Pedro Kremer, Doca Rolim e Alexandre Mourão, ajudando a reforçar essa atmosfera ensolarada do disco.