Coloque no roteiro de um filme uma menina apaixonada por cachorra recém-nascida que, adulta, será guia de velho começando a perder a visão. Apimente um pouco a produção e adicione à história que a cachorra-guia passará por processo de rejeição do deficiente visual e sofrerá (calada) um bocado. Para incrementar o enredo, tenha em mente que o filme se baseia em episódio real descrito no romance japonês “The Life of Quill, the Seeing-Eye Dog”, de Ryohei Akimoto e Kengo Ishiguro, que vendeu 300 milhões de exemplares na Ásia. Dito isto, esqueça os escudos, as defesas e a autocritica que nos socorrem nessas horas: eles de nada adiantarão, pois será impossível resistir.
Assim, melhor assumir as emoções de vez, preparar o lenço e não ter medo do ridículo. Chore.
Eternos Companheiros (Xiao Q, China/ Hong Kong, 2019, drama, 107 min.), de Wing-Cheong Law, foi produzido com o intuito de, sem qualquer pudor, fazer o público se emocionar. Mas, sabendo da importância que os cães adquiriam na sociedade urbana moderna, a catarse chega a ser natural.

Isto explica porque não há grandes preocupações da produção e da direção em acompanhar os cultuados cineastas chineses preocupados com linguagem, estética, técnica e outros elementos da cultura cinematográfica.
Pelo contrário, tudo em Eternos Companheiros foi pensado para não dificultar em nada a comunicação direta com o público. As luzes coloridas abundantes dos ambientes, por exemplo, atraem facilmente a atenção. As sequências que tocam nossas emoções não têm pretensões de serem sutis nem de evitar os exageros nada econômicos.
Veja a cena da menina que cuidou de Xiao Q ou Little Q quando bebê e acompanhou-a no treinamento: Chan Zhiqiao (Angela Yuen) faz tudo para que o animal permaneça com ela. A cena da despedida, como se pode imaginar, será verdadeiro vale de lágrimas.
Novas lágrimas serão provocadas quando a cachorra vai trabalhar com famoso chef, Lee Bo Ting (Simon Yam), que está perdendo a capacidade de enxergar.
Como não se conforma com a deficiência e não aceita a incapacidade de andar sem ajuda externa, o animal que lhe serviria de companhia e de prestadora de serviços é, sistematicamente, rejeitado. Ninguém absorve rejeição impunemente. O que de forma hábil o roteiro faz é levar o público se identificar com esse terrível sentimento. Uma vez identificado, a emoção aflora sem reservas. O mesmo artificio é usado quando Little Q fica velha. Todos os espectadores velhos se identificam com as agruras da cachorra. São sofrimentos dela e nossos – o que explica o enorme apelo emocional do filme.

Sabemos, até a partir do título em português, que Lee Bo Ting será sensibilizado pela determinação de Little Q. E há razão para citar o desenvolvimento dessa mudança porque a direção poderia ter mais cuidado nessa passagem – a virada principal – que transformará a vida da cachorra e a do dono.

Ocorre que a sequência é brusca demais, apressada em excesso. Talvez porque o roteiro, a direção e a produção tenham levado em conta que se o sofrimento gera lágrimas, o fim dele também. E chorar de alegria, seja por ser edificante ou porque todos almejamos finais felizes, é o toque final da catarse: sofremos, choramos e nos purgamos e, logo, recebemos a recompensa.
Confira o trailer no link https://youtu.be/jGd99eJeMYU
Eternos Companheiros tem esse desenho bem calculado. Não será difícil, pois, supor que ele alcance plenamente o objetivo. E não há porque não alcançá-lo. Nestes difíceis dias pelos quais passamos, projetamos como se fossem nossos o sofrimento de homem com deficiência e o trabalho solidário de Litle Q que vemos na tela.
Dramas infantis que adultos adoram, como este filme chinês, podem nos servir de catarse para escoar os muitos sofrimentos e os muitos choros dos anos de 2020 e 2021 que, sabemos, não passarão indiferentes a nenhum de nós. Entregue-se, portanto, sem oferecer resistência.
O filme chegou aos cinemas de algumas capitais brasileiras na semana passada; ainda não há data de estreia em Campinas
João Nunes é jornalista e crítico de cinema