Neste ano de 2021 estamos atingindo os 40 anos da descrição do primeiro caso de síndrome de imunodeficiência adquirida (Aids) no mundo. Me lembro das enormes dificuldades e inseguranças, naquele momento, no entendimento dessa “nova” doença. Devemos lembrar que as tecnologias para o isolamento e detalhamento do vírus disponíveis à época eram outras e muito mais rudimentares se compararmos às de hoje. Para efeito de comparação dos tempos, o vírus da pandemia do SarsCov2 foi clonado em menos de uma semana. O vírus causador da Aids, à época denominado HTLVIII, levou cerca de dois anos para ser confirmado e é alvo ainda de disputa por royalties entre americanos e franceses até os dias de hoje. Este fato levou ainda a uma polêmica discussão internacional sobre a “paternidade” do vírus e na concessão do prêmio Nobel de Medicina de 2008 entre os líderes de pesquisadores envolvidos quando os americanos foram “esquecidos” nesta premiação.
Mas, certamente, há um reconhecimento da comunidade científica do compartilhamento na identificação do vírus. Como hematologista, tenho certeza que deixamos escapar inúmeros casos, incluindo de neoplasias hematológicas associadas ao vírus. O médico só faz o diagnóstico que conhece e nós ainda não conhecíamos o vírus e consequentemente as doenças a ele relacionadas.
Após a veiculação por meios de revistas científicas e comunicação leiga, passamos a ficar mais atentos e os diagnósticos começaram a ser feitos. Durante anos, não havia qualquer forma válida de diagnóstico e, principalmente, de tratamento.
Os primeiros testes diagnósticos eram “desastrosos” com quantidade enorme de testes falsos, tanto positivos como negativos.
Eu participei de inúmeros congressos médicos internacionais de Aids (conferências anuais que existem até hoje) e fazia isto atrás de novas técnicas de diagnóstico e de triagem do sangue. Assisti em países como a Holanda, o Canadá e a Suécia, manifestações dramáticas e agressivas pela sociedade contra a incapacidade da comunidade científica de desenvolver remédios, vacinas, testes etc. que fossem válidos e que pudessem atenuar a pandemia. Havia um clamor enorme pela necessidade de maiores investimentos para controlar sua progressão em todo o mundo. Assisti ministros de Saúde destes países serem “vaiados” a ponto de não conseguirem falar ou fazer suas saudações nas solenidades de instalação dos eventos. Era um clima tenso e dramático que não havíamos vivenciado até então.
Do ponto de vista de nosso trabalho, estávamos tentando controlar a transmissão do vírus através do sangue com a instalação da Hemorrede do Estado de São Paulo, do programa nacional de sangue e hemoderivados e dos Hemocentros. Após alguns anos surgiu o AZT (Zidovudina), primeiro anti-viral (apesar de ter sido desenvolvido originalmente para o tratamento do câncer) com ação comprovada contra o vírus HIV.
Os primeiros estudos de fase 1 do AZT foram feitos no início de 1985 nos EUA na Duke University. A partir daí novos fármacos foram se desenvolvendo, mas o AZT pode ainda ser utilizado até os dias de hoje nos chamados “coquetéis antivirais” com ótimos resultados.
Outro aspecto de grande dramaticidade e dor foi a contaminação e mortes de pacientes portadores de hemofilias. As hemofilias são doenças genéticas, raras (cerca de 150 mil novos casos por ano no Brasil), ligadas ao sexo, e que causam distúrbios de coagulação com quadros hemorrágicos que podem ser graves e até fatais. No início da pandemia pelo vírus HIV, todos os produtos para prevenção e tratamento das hemofilias eram derivados do sangue (crioprecipitado ou fator VIII fracionado industrialmente).
Nesse período, não haviam métodos de inativação viral nos hemoderivados e, muito menos, métodos de produção de fatores de coagulação por recombinação de DNA. Simplesmente, não existiam estes métodos. Infelizmente, muitos pacientes à época se contaminaram e faleceram por Aids causada pela transmissão do vírus.
Nós hematologistas, vivenciávamos todos os dias o dilema de transfundir hemoderivados inseguros e poder contaminar os pacientes ou não transfundirmos e não controlarmos os quadros hemorrágicos.
Esse era mais um drama ético e assistencial daquele período. Felizmente, a ciência evoluiu e pudemos em alguns anos desenvolver as técnicas de inativação viral conhecida como “solvente-detergente” em nível industrial e, o mais importante, desenvolver os métodos de recombinação de DNA hoje disponíveis e absolutamente seguros do ponto de vista da transmissão viral. Os pacientes hemofílicos, grandes vítimas no início da pandemia do vírus HIV, hoje têm a sua disposição maior número de profissionais e centros especializados e produtos em quantidade e qualidade para sua prevenção e tratamento.
Estamos entrando na era da terapia gênica e, quem sabe, em alguns anos, possamos ter tratamentos curativos nestes pacientes. Assim, podemos dizer que já se passaram 40 anos desde o primeiro caso de Aids. Quanto aprendemos e quanto fomos evoluindo, criando protocolos de convivência, diagnóstico, controle e tratamento. Medidas simples como o uso de preservativos são salvadores para a transmissão sexual da doença. Métodos de diagnósticos sorológicos e moleculares reduziram a transmissão pelo sangue a níveis próximos a zero. Novos fármacos transformaram a doença fatal, temida e incontrolável, em sua maioria, em doença crônica e controlável.
A ciência foi fundamental para a mudança do cenário trágico do passado.
Guardadas as devidas proporções e diferenças, podemos nos espelhar nesta história para o enfrentamento da pandemia do SarsCov2. A sociedade deve exigir as medidas de melhor controle e assistência à saúde. Entretanto, a mesma sociedade deve confiar na ciência, já que o tempo da ciência é mais longo do que gostaríamos, e também colaborar decisivamente com a utilização de medidas simples, práticas e baratas e que estão a sua disposição, conhecidas como “não farmacológicas” (uso de máscaras, lavagens das mãos com água e sabonete ou higienização com álcool em gel e distanciamento social).
Isto depende apenas de comportamento adequado e consequente de cada um de nós. Devemos tirar destes momentos de crise, os ensinamentos para toda a nossa vida.
Carmino Antonio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020