Um estudo divulgado recentemente passou quase despercebido pela grande imprensa e sociedade em geral, apesar de suas graves conclusões dizerem muito sobre o risco que estamos enfrentando. O estudo foi produzido e divulgado pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), que fez uma avaliação inédita sobre as consequências das mudanças climáticas para a segurança hídrica no país.
De acordo com o estudo “Impacto da Mudança Climática nos Recursos Hídricos do Brasil”, até 2040 a disponibilidade de água pode cair até 40% em algumas regiões, com maior gravidade para o Nordeste, mas também afetando Sudeste, Norte e Centro-Oeste. A Região Sul, pelo contrário, pode ter um acréscimo na disponibilidade de água, o que não necessariamente seria algo bom, uma vez que o aumento do volume seria pelo excesso de chuvas, o que, como sabemos, também tem resultados que podem ser catastróficos.
As conclusões do estudo foram tiradas a partir de modelos matemáticos complexos, considerando os cenários previstos de aquecimento global para os próximos anos. O estudo incluiu estimativas de impactos das mudanças climáticas nos recursos hídricos até 2100 e foi formulado como um subsídio para o planejamento do uso de recursos hídricos no âmbito de cada bacia hidrográfica.
Infelizmente as projeções nada otimistas contidas no estudo da ANA tendem a se confirmar, considerando os dados atuais de disponibilidade de água em várias regiões do país. Em janeiro deste ano, várias regiões de todos os estados brasileiros estavam em situação de seca fraca, moderada, grave ou excepcional, com exceção justamente dos estados da região Sul, que sentiam os efeitos de fortes chuvas entre final de 2023 e início de 2024.
O alto grau de incerteza para a segurança hídrica, alimentado pelos inevitáveis impactos das mudanças climáticas, é um ingrediente que torna ainda mais preocupante a determinação do governo de São Paulo, há não muito tempo respaldada pela Assembleia Legislativa paulista, de privatizar a Sabesp. A privatização da Sabesp, que ainda depende de várias instâncias e que pode chegar a uma disputa judicial, é um elemento que gera preocupação para a região das bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ), da qual Campinas é o maior município.
Desde o início da década de 1980 acompanho a luta da região do PCJ para a defesa de suas águas. Por sua mobilização, iniciada em Piracicaba, a região se tornou um modelo de gestão em recursos hídricos, tendo influenciado na elaboração e entrada em vigor das leis estadual e federal.
Uma das preocupações centrais da região, nesse percurso de batalhas pela proteção dos rios, sempre foi com o Sistema Cantareira, estruturado durante o regime militar para viabilizar o abastecimento de metade da Grande São Paulo, através da transposição de bacias, com a retirada de águas da bacia do Rio Piracicaba e transporte para a bacia do Tietê.
Com a força política adquirida por sua defesa das águas, em um processo histórico de repercussão nacional e internacional, a região do PCJ finalmente alcançou uma grande vitória em 2004, com a conquista da gestão compartilhada do Sistema Cantareira. Na época, foi muito relevante a participação do Conselho de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Campinas (RMC) nessa conquista.
Há 20 anos, portanto, as bacias do PCJ, através de seus Comitês de Bacias e outros órgãos representativos, participam da gestão do Cantareira, até então exclusiva da Sabesp. Essa participação é muito importante, considerando que, em função da gestão compartilhada, em momentos críticos o Cantareira libera mais água para auxiliar na segurança hídrica da região, sobretudo na bacia do Rio Piracicaba.
Com a eventual privatização da Sabesp, esse panorama pode se modificar. Ainda não está devidamente clara a questão da gestão do Cantareira com essa privatização.
Com uma Sabesp privatizada, e portanto com o objetivo de gerar lucros para seus acionistas, como ficará o uso da água, em termos de interesse público, na área de influência do Cantareira, incluindo as bacias do PCJ? Se houver uma outra estiagem intensa, como a de 2013-2014, que levou o Cantareira quase ao colapso, como ficará a destinação de água reservada no Sistema?
Assim, é fundamental que a região de Campinas, no contexto das bacias do PCJ, esteja devidamente esclarecida sobre como ficará a gestão do Cantareira pós-privatização da Sabesp, se ela de fato ocorrer. Com os inevitáveis impactos das mudanças climáticas nos recursos hídricos, a segurança hídrica será cada vez mais essencial para o futuro de uma determinada região, no âmbito de uma ou mais bacias hidrográficas.
No caso da região de Campinas, o futuro da segurança hídrica, em um cenário de muitas incertezas geradas pelas mudanças do clima, passa necessariamente pelo formato da gestão do Sistema Cantareira. Os órgãos pertinentes na região já deveriam ter se pronunciado com mais veemência a respeito.
O colapso da água é o fim de uma civilização. O grave panorama traçado por estudos como o da ANA deve ser cada vez mais levado em consideração em situações como a da definição da segurança hídrica de uma região, ainda mais se ela é uma das mais importantes do Brasil.
José Pedro Martins é jornalista, escritor e consultor de comunicação. Com premiações nacionais e internacionais, é um dos profissionais especializados em meio ambiente mais prestigiados do País. E-mail: [email protected]