Desde que o bilionário herdeiro de espólios do Apartheid da África do Sul comprou o Twitter, em outubro de 2022, as expectativas de que a rede social poderia ser utilizada para propósitos particulares de Elon Musk e seus aliados políticos de extrema-direita vem se tornando realidade. De acordo com dados da ONG britânica “Center for Countering Digital Hate” (Centro de Combate ao Ódio Digital), uma das primeiras medidas do investidor, ao assumir o controle da empresa, foi demitir cerca de 80% dos funcionários que cuidavam principalmente da análise e bloqueio de conteúdos considerados ofensivos ou impróprios.
O resultado disso foi o aumento do discurso de ódio nas redes, principalmente ligado a racismo, neonazismo, misoginia e machismo, homo/transfobia, vazamentos de fotos íntimas e informações pessoais e ameaças violentas a pessoas que criticam posturas,decisões e ideias de influenciadores populares da rede.
Quem usa a plataforma é testemunha da quantidade de informações falsas, teorias conspiratórias e crimes virtuais cometidos o tempo todo sob o corrompido argumento da liberdade de expressão nas entranhas da internet.
O magnata dono da rede social agora chamada de “X” também é CEO da empresa de carros elétricos Tesla, da empresa de foguetes que promete colonizar o espaço SpaceX, e da empresa biotecnológica Neuralink, que recentemente realizou experimentos implantando um chip no cérebro de um ser humano. Dono de uma fortuna de quase US$200 bilhões (cerca de R$1 trilhão!), o empreendedor nascido na África do Sul chegou aos bilhões quando vendeu a plataforma de pagamentos PayPal ao site de compras online eBay; atualmente, também ganha dinheiro especulando com criptomoedas e está por trás de tecnologias de inteligência artificial interativa, como o OpenAI, do ChatGPT.
Sem dúvidas, a genialidade do empresário está em contratar pessoas talentosas para extrair delas o produto de sua criatividade, assim como de milhares de trabalhadores e trabalhadoras que, expropriados de sua força produtiva, multiplicam a fortuna de seu empregador. Pelo menos até que máquinas e softwares inteligentes possam torná-las totalmente descartáveis.
Desconsiderando o fato de que, como praticamente todo bilionário, Musk multiplicou dinheiro herdado de exploração econômica e desigualdades sociais, há outra coisa que destaca o oligarca no cenário político-cultural internacional: sua perigosa arrogância em se considerar acima dos limites constitucionais de regras, regulamentos e leis em que se baseiam governos democráticos.
Diferente de chefes de Estado democraticamente eleitos, o multibilionário nunca participou de pleitos eleitorais que o conferissem poderes de representatividade popular ou, tampouco, foi aprovado em concursos públicos onde pares auferiram e respaldaram sua autoridade para arbitrar questões políticas que envolvem a soberania de países independentes e a vida de centenas de milhões de pessoas.
O uso de bots e inteligência artificial, mesmo endossado pelas massas alienadas que surfam as ondas de conteúdos virais e polarização eleitoreira, não equivale e nem substitui o exercício democrático do voto, a fiscalização mútua entre os Três Poderes e a genuína participação do povo, em sua ampla diversidade, no debate público e na construção social em que se baseiam as civilizações.
Interessado nas reservas de lítio e gás natural da Bolívia, Elon publicou um tweet em 2020 ameaçando o governo democraticamente eleito e constitucionalmente legítimo de Evo Morales dizendo “Vamos dar golpe em quem quisermos! Lide com isso”. No Brasil, foi a rede de internet via satélite fornecida pela empresa do bilionário que permitiu o avanço do garimpo ilegal na Amazônia, fortalecendo a política predatória de desmatamento e genocídio dos povos indígenas estimulada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.
Proclamado “antissistema”,“libertário” e “revolucionário” por uma legião de fãs que o idolatram, Musk tem grande parte de sua receita vinda de negócios com a China, governada pelo autoritário Partido Comunista Chinês, e com a Arábia Saudita, uma das únicas monarquias absolutistas do século XXI, teocrática e ultraconservadora.
Nunca houve posicionamento oficial do suposto defensor da liberdade de expressão sobre as prisões arbitrárias dos ativistas políticos Julian Assange e Edward Snowden, por exemplo, ou do possível banimento do TikTok nos EUA.
O bilionário comemorou a vitória eleitoral do fanático Javier Milei, atual presidente da Argentina, e recentemente atacou o juiz Alexandre de Moraes, membro do Supremo Tribunal Federal do Brasil, acusando-o de instaurar uma “ditadura” no Brasil por conta das medidas que tem adotado
contra criminosos condenados por disseminar notícias falsas, fomentar discurso de ódio e incitar o golpismo, como nos atos antidemocráticos de 08 de janeiro de 2023.
Durante o governo catastrófico de Bolsonaro, vimos de perto os graves estragos trazidos pelo uso das redes sociais sem moderação e responsabilização de usuários por várias práticas que, fora da internet, configuram-se claramente violações à ordem democrática e às Leis vigentes no país – sendo, portanto, crimes!
Do negacionismo científico com relação ao uso de máscaras e vacinação contra a Covid-19 aos ataques pessoais que levaram a hostilização, linchamentos e assassinatos por motivações políticas e intolerância, à articulação de acampamentos golpistas, convocação e organização do atentado contra a democracia no começo do ano passado – tudo isso faz parte de uma nova forma de mobilização política supranacional que viola garantias institucionais e desrespeita limites criados para possibilitar a convivência pacífica, solidária, consciente e responsável entre diferentes pessoas, povos e nações.
Caricatura de filmes de super-heróis, o supervilão endinheirado usa do fascínio tecnológico para enganar a população, escravizando-a enquanto destrói as bases civilizatórias e assume o poder para satisfazer seus desejos sórdidos e egocêntricos.
Quando seus súditos percebem, é tarde demais e só uma reviravolta épica pode fazer com que haja um final feliz. Acontece que na vida real, fora da ficção dos filmes e das redes sociais, estamos, enquanto humanidade, enfrentando problemas graves e urgentes, como a intensificação do aquecimento global, o genocídio em Gaza promovido pelo governo ultranacionalista de Israel, a expansão do neoczarismo ditatorial de Putin, na Rússia, e o avanço das desigualdades sociais, da fome e da miséria, usado como arma de controle e repressão por governos populistas militaristas de extrema-direita em países do mundo todo.
Enquanto pessoas sem acesso à educação crítica e emancipatória seguem sendo enganadas e extorquidas pela indústria da fé e pelo sensacionalismo, governos tirânicos e megaempresários fazem investimentos trilionários em armas de destruição em massa e foguetes para minerar meteoros e colonizar planetas. Como falar sobre liberdade de expressão, patriotismo, autodeterminação nacional e combate ao crime nesse cenário caótico tão cheio de contradições e carente de bom senso e coerência?
Como todo terrorismo, o ciberterrorismo depende da atmosfera de desordem, medo, insegurança e desconfiança para insuflar a violência, justificar o uso de medidas extremas e cometer atrocidades em nome de “um bem maior”, de uma profecia, do combate a um inimigo imaginário, de uma ameaça intangível.
A internet,como rede informacional de conexões simultâneas, é, sem dúvidas, uma das maiores realizações da humanidade nas últimas décadas, permitindo o compartilhamento de conhecimentos, trocas de saberes, popularização de manifestações étnico-culturais e democratização do acesso a espaços de expressão e construção coletiva. É preciso considerar, entretanto, que o ciberespaço, como qualquer outro espaço, está sujeito aos interesses colonialistas e tirânicos de agentes de poder, que ambicionam, acima de tudo e de todos, realizar seus projetos pessoais egocêntricos e egoístas.
Assim, os mesmos limites, regulamentações e dispositivos legais que organizam o funcionamento das sociedades democráticas (incluindo a imprensa e os meios de comunicação) devem, com urgência, passar por ajustes que os permitam contemplar os mundos online, sob risco de tornar ainda mais nociva a sobreposição de realidades virtuais às realidades externas às telas luminosas.
O Projeto de Lei 2630/2020, apelidado Lei das Fake News, prevê exatamente isso: a regulamentação do uso irrestrito de plataformas online, redes sociais e ambientes virtuais, como já acontece com jornais televisivos, programas de rádio e mídias impressas.
Quem seria prejudicado com a coibição de discurso de ódio, divulgação de notícias falsas e incitação de crimes? Quem lucra com desinformação, golpes financeiros, pornografia infantil, ciberbullying, assédio virtual e monetização de conteúdos ilegais não pode ser chamado de defensor da liberdade!
Combater mentiras, preconceitos, intolerância e violências, longe de ser uma forma de censura, é reafirmar que a liberdade só existe quando são extintas as relações de opressão e exploração que sustentam governos ditatoriais, oligarcas bilionários e doutrinas fundamentalistas.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo, mestre em Linguagens, Mídia e Arte, pós-graduado em Neuropsicologia.