Na primeira imagem, as ondas do mar inundam a tela. Depois, saberemos que a protagonista, Paula (Patrícia Saravy), espera o terceiro filho e, segundo ela, o bebê nada na piscina de líquido amniótico do útero materno. Logo, no centro da trama, surge o desejo de Paula de adquirir uma piscina. E haverá água da chuva, do rio e do coco, que os meninos tomam durante aventura noturna.
“A Felicidade das Coisas” (Brasil, 2021, drama, 87 min.), de Thais Fujinaga, trata do desejo, mas não aquele manifesto pela mulher grávida – quase sempre extravagante. Quer dizer, comprar piscina sem dinheiro e instalá-la na modesta casa de praia a fim de impedir os filhos de se aventurarem pela cidade, não deixa de ser excêntrico.
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Pois não são bizarros nossos sonhos de conquistar amores impossíveis? Ou ganhar na loteria? Morar numa ilha? Ter aconchegado nos braços, por ao menos uma noite, o objeto dos nossos devaneios sexuais?
O roteiro da própria diretora nos leva a pensar no desejo inacessível e usa a água como metáfora. Se água é símbolo da vida, os personagens do filme anseiam por uma existência que eles não têm – como a maioria de nós.
Em escala descendente, Paula digladia consigo própria para fazer caberem dívida e desejo no mesmo espaço, tem noção da incompatibilidade; porém, o desejo (mais poderoso) prevalece. E, afetada pelo marido distante, busca equilibrar as emoções. Adquirir algo pode compensar o afeto ausente. Ou atraí-lo. Ela sabe que nenhuma das alternativas funcionará e, de novo, o desejo se sobrepõe.
Depois, vem o filho Gustavo (Messias Gois). Os desacertos da mãe o faz, também, sentir falta do pai. Segundo a avó (Magali Biff), os homens apreciam a companhia de outros homens. Ele é pré-adolescente e anseia ser homem, se atirar. E se atira em aventura perigosa e, mesmo inconsciente, pune a mãe – que não se acerta com o pai nem com ele.
Em seguida, na tal escala, surge a avó. E joga na cara da filha (que reclama de Gustavo) que ela era igual e só fazia o que lhe dava na telha. Apanhou por isso, lembra a filha. A mãe conservadora ante o desejo, teria dinheiro para pagar as dívidas, mas não vê sentido na piscina; Paula lhe ensina que não se deve acalentar sonhos pequenos nem se conformar com o não ter. Ter, para ela, é o mesmo que ser.
A filha mais nova (Lavínia Castelari), criança, parece não estar dominada pelo fantasma adulto; porém, no micro universo ao qual pertence, ela o exercita. Não sabe sair, mas soube pular no buraco onde seria colocada a piscina. Claro, premida por desejo.
Thais Fujinaga trata de temas banais visando alcançar algo mais profundo, do mesmo modo que cria situações prestes a desembocar em algo ruim – uma tragédia, talvez. Mas trata-se de exercício de anticlímax que serve para driblar a tensão.
É assim que ela estabelece bela solução do conflito ao criar desfecho falso para atender a expectativa da família e todo mundo se esbalda na água. Então, ouvimos pela primeira vez a trilha de Dudinha Lima. A música é bonita, as imagens agradáveis, a atmosfera joga a favor e o humor desencanta. Um conforto de clara evocação à Lucrécia Martel de “O Pântano” (2001) e “A Menina Santa” (2004), no qual um artifício rompe a tensão.
Pareceria o fim da história, mas o roteiro retoma a tensão. Gustavo que, com prazer, até tomou chuva, está cercado de conflitos. Quer a companhia dos homens. Pensando que é homem feito, foge. Está em busca da água (da vida) – a da chuva, solene e linda, não lhe foi suficiente. Necessita mergulhar nas misteriosas águas do rio, em meio à noite e seus temores.
Gustavo teima em subverter regras – como quando anda no pedalinho. Igual a mãe, inconformada com sonhos pequenos. Mas aprendeu uma lição: o mergulho é necessário; porém, perigoso. Corre-se o risco de machucar. Quem se importa?
A bonita cena final sinaliza que, do alto de algum lugar confortável possa se enxergar melhor como são “demais os perigos desta vida”. Então, ele poderá escolher entre a comodidade e os riscos.
Quanto a “ter” e “ser”, melhor é ser. E, se desejar possuir, que sejam desejos que se guarda na alma porque os de natureza palpável podem ser consumidos pela ferrugem e pela traça.
“A Felicidade das Coisas” entra em cartaz nos cinemas a partir de quinta-feira, dia 19/5
João Nunes é jornalista e crítico de cinema