Nas últimas semanas, voltou a ganhar força a proposta de converter escolas estaduais de São Paulo em escolas cívico-militares, no bolsonarismo nada moderado que o governador Tarcísio de Freitas tenta disfarçar para apadrinhar o eleitorado dito de centro-direita na região do Brasil famosa pela atuação truculenta da polícia militar.
A militarização das escolas pode ser vista como uma tentativa de impor disciplina e ordem através de métodos coercitivos, refletindo uma abordagem que valoriza a repressão e o controle em vez de uma educação inclusiva e crítica. Antes de tudo, é preciso compreender que no Brasil, um país continental de passado colonial-escravista e perpetuação de profundas desigualdades socioeconômicas, o modelo de escolas cívico-militares pode ser percebido como uma dissimulação de políticas públicas repressivas e uma ameaça potencial à democracia e à sua ampla diversidade.
Para quem conserva a ilusão de que a educação cívico-militar traria mais qualidade ao ensino, basta destacar que, das cem melhores escolas públicas do Brasil, seguindo o IDEB-2023, nenhuma é militar. Ao contrário de trazer qualidade ao ensino, esse modelo pode restringir a liberdade de expressão, o pensamento crítico e a diversidade de opiniões, que são pilares fundamentais para uma educação democrática e plural.
Ao adotar práticas militares dentro do ambiente escolar, cresce o risco de naturalizar a violência institucional e a obediência cega às autoridades, minando os princípios de uma sociedade livre, consciente e com autonomia.
Para piorar, esse movimento ocorre num momento em que discursos de intolerância, fanatismo religioso e ultranacionalismo estão em ascensão, criando um ambiente perigoso para a normalização de medidas autoritárias disfarçadas de soluções para problemas sociais complexos.
Não há na História sequer uma única experiência em que a militarização da educação e sua submissão ao fundamentalismo religioso tenha trazido resultados benéficos à população. Do Código de Hamurabi na Mesopotâmia (atual Iraque), o militarismo do Império Romano (que levou à crucificação de Jesus Cristo, considerado subversivo) e a Santa Inquisição (que assassinou cientistas acusadas de bruxaria), ao nazi-fascismo da Segunda Guerra Mundial e à educação repressiva na extinta URSS, nas ditaduras militares do Brasil, Argentina e Chile na década de 1970, além da atual situação na Coreia do Norte: as lições de fracasso são importantes para alertar sobre os riscos desse caminho.
Em vez de criar um ambiente propício ao desenvolvimento integral de estudantes, não só como futuros profissionais, mas como pessoas humanas, as doutrinas militares podem promover o culto ao fanatismo, à intolerância e à repressão. A ênfase na disciplina rígida e na hierarquia pode marginalizar ainda mais estudantes de menor poder aquisitivo, que já enfrentam barreiras significativas devido às desigualdades socioeconômicas a que estão expostos.
Em vez de abordar as causas subjacentes da violência e do fracasso escolar, como a pobreza, a falta de oportunidades e a desigualdade social, a perigosa ilusão de transformar escolas em quartéis pode simplesmente negar a existência desses problemas, inventando inimigos intangíveis a serem combatidos, em agendas de costumes, geralmente envolvendo o controle sobre o corpo e a sexualidade das pessoas.
A supressão de escolas públicas que partilham de raízes culturais e são produzidas pelo contexto sociocultural dos lugares por escolas cívico-militares também pode intensificar a exclusão de grupos já vulneráveis, como pessoas de pele preta, LGBTQIA+, pessoas com deficiências ou neurodiversidades, exaltando um ambiente eugenista que valoriza a padronização e a uniformidade em detrimento da inclusão e da pluralidade.
O fundamentalismo religioso, quando combinado com a militarização das escolas, tende a reforçar e legitimar comportamentos extremistas, na contramão das premissas em que se baseiam as democracias alinhadas aos direitos humanos.
Negacionismo da ciência, revisionismo histórico e idolatria a pastores, políticos, generais e influenciadores são a fórmula fatal para o desastre civilizatório.
Quando os valores religiosos são interpretados de maneira rígida e intolerante e são impostos de forma autoritária dentro das escolas, os jovens podem ser incentivados a ver o mundo através de uma perspectiva superficial e infantilizada, maniqueísta, que divide o mundo em extremos como bem e mal, onde aqueles que não compartilham das mesmas crenças são vistos como inimigos.
Enquanto as escolas se fecham ao debate, as redes sociais infestam mentes e corações com fomento ao consumismo, sensacionalismo, fake news e promessas patrocinadas por quem lucra com alienação, ignorância e instabilidade político-econômica.
Cultivar lugares de intolerância, extremismo e culto à violência, sob pretexto de zelar pela disciplina e pela ordem é uma armadilha conhecida.
A história mostra que contextos de repressão, doutrinação e exclusão produzem conflitos, guerras e a insurgência de grupos terroristas.
É preciso multiplicar, fortalecer e apoiar políticas de combate à pobreza, acesso à educação, moradia digna, salários justos e diversidade cultural, de forma que a segurança não seja exercida através da violência e da repressão, mas, de forma preventiva, promova a inclusão, o respeito à pluralidade e ao pensamento crítico, ao invés de reforçar a intolerância incutida no pensamento militar.
Como ensinava o mestre Paulo Freire, precisamos de uma Educação que ensine a pensar, e não a somente obedecer.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo, mestre em Linguagens, Mídia e Arte, pós-graduado em Neuropsicologia.