A narrativa é velha, mas nas telas luminosas parece inovadora: a onda do discurso meritocrático e do empreendedor bem-sucedido que, do zero ao bilhão, ascendeu por puro esforço. Essa fábula falaciosa, impulsionada pelos algoritmos na era informacional, é a fantasia perfeita para um sistema predatório que precisa desesperadamente justificar sua própria existência.
Até aí, nenhuma novidade. No topo da pirâmide das desigualdades, aqueles que lucram com ela usam toda a estrutura que controlam para garantir que permanecerão lá, intocáveis – incluindo os megaempresários das big techs que ditam o que consumimos, em que velocidade e com qual finalidade. Quanto mais entretenimento, sensacionalismo e distrações, melhor para desviar espectadores-consumidores da pergunta essencial: que tipo de “mérito” pode justificar a existência de pessoas tão ricas?
Num mundo onde apenas 3 mil bilionários concentram quase $ 16 trilhões (mais de sete vezes o PIB do Brasil), enquanto mais de 700 milhões de pessoas vivem com cerca de US$2 por dia, é uma afronta moral usar palavras como “progresso” e “civilização” para tentar legitimar a função social desses indivíduos. Que tipo de avanço pode existir numa estrutura que mantém a miséria como seu alicerce?
A realidade brasileira é um espelho brutal dessa obscenidade: 40% da população vive com menos de R$ 600 por mês, enquanto 300 bilionários acumulam mais de R$ 2 trilhões em patrimônio. O aumento da fortuna desse minúsculo grupo, só entre 2023 e 2024, seria suficiente para custear o Bolsa Família, que beneficia mais de 20 milhões de famílias, por dois anos. Esses números não são acidentais. Ao contrário, são a prova material da miséria como produto da concentração de riqueza.
E esse sistema tem uma lógica perversa: um professor jamais ficará bilionário dando aulas, um bombeiro nunca ficará rico salvando vidas, e uma enfermeira nunca fará fortuna dobrando plantões. Por mais dignos, honestos e imprescindíveis que sejam seus trabalhos, eles não acumulam capital explorando a força de trabalho alheia, tampouco com juros ou especulação. Mas se os trabalhos que fazem o mundo funcionar não criam bilionários, o que, afinal, os bilionários fazem que os torna dignos de concentrar tanto dinheiro e poder?

Perceber que grande parte do alto escalão da política institucional é composta por super-ricos é um passo fundamental para entender por que a elite financeira é sempre a mais beneficiada pelo Estado. O poder, que emana do povo, é capturado por quem já o detém, e isso fica ainda mais nítido quando colocamos na lista líderes da indústria da fé, da grande imprensa, dos cartéis imobiliários, de bancos e de setores como agronegócio, mineração e energia.
A classe trabalhadora, não por acaso, é instigada a se dividir entre MEIs, CLTs, esquerda, direita, liberais, progressistas, conservadores. Enquanto a fragmentação horizontal desmobiliza as lutas populares, é o poder verticalizado que segue comandando nossas vidas. O sistema recompensa quem o legitima, quem aceita a exploração, a injustiça e a covardia da fome, do desabrigo e das guerras, se ludibriando com pequenas recompensas materiais e individuais.
Essa covardia, aliás, é a essência do lucro. A manutenção da pobreza é uma estratégia cruel de forçar pessoas desesperadas a aceitarem trabalhos precários, perigosos e de baixo prestígio social em troca de salários que mal garantem sua sobrevivência. É uma forma de escravidão moderna, normalizada e legalizada pelo capitalismo. Por isso, gerar empregos não é favor algum: é estratégia para maximizar a exploração da mais-valia.
Não há caminho para construir essas fortunas gigantescas que não seja pela exploração do trabalho alheio, pela corrupção público-privada ou pela herança de privilégios, muitas vezes herdados das mais brutais violações da vida e da dignidade humana. Quanto mais gente explorada, mais dinheiro concentrado nas mãos de quem explora.
Você, por acaso, conhece alguém que ficou bilionário por descobrir a cura de uma doença rara, combater a pobreza em um país miserável ou liderar uma revolução social contra ditaduras? Nem eu.
Pensar que o capitalismo é o único sistema socioeconômico possível é tentar limitar a essência criativa, transformadora e subversiva do ser humano. Foi essa essência que criou a agricultura, a matemática, a arquitetura, a astronomia, as artes, a medicina, a democracia e os direitos humanos; apesar das monarquias absolutistas, da escravidão, do feudalismo, das inquisições, do nazifascismo, dos fundamentalismos e do neoliberalismo.
O mundo foi criado e é mantido por mãos, pés, mentes e corações de pessoas que, diariamente, dão o melhor de si em busca de dignidade e qualidade de vida para si e suas famílias, expostas a uma infinidade de variáveis que envolvem gênero, cor de pele, nacionalidade, saldo bancário, sobrenome e, muitas vezes, a sorte de estar no lugar certo, na hora certa.
É evidente que virtudes como coragem, determinação e dedicação fazem a diferença na busca pelo desenvolvimento. Mas, em condições profundamente desiguais, é uma crueldade supor que sucesso e fracasso seguem fórmulas exatas (ou mágicas). O sistema, como está, é projetado para dar manutenção às estruturas de desigualdade e exploração. Por isso é tão urgente e inevitável mudá-lo!
Mercantilizar a vida e a natureza, fazendo parecer normal que tantas pessoas vivam sem teto, passando fome, com frio e com medo, enquanto algumas poucas ostentam luxos e extravagâncias completamente desnecessários provoca a repensar valores civilizatórios – ainda mais numa sociedade que se considera pautada por ensinamentos cristãos e aspirações democráticas.
Abrir janelas para romper a inércia do discurso raso da meritocracia e do sucesso individual é vital para superar as muitas crises que enfrentamos, há séculos! Reconhecer que houve avanços, também. Mas nunca graças a bilionários, políticos ou profetas. Sempre graças ao povo! Mulheres e homens de carne e osso, desejos e limitações, sonhos e necessidades. Ao trabalho honesto, à criatividade, à solidariedade e ao desejo intrínseco de buscar emancipação e liberdade (não para alguns, mas para muitos – todos!) que, mesmo latente, move a humanidade.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo, mestre em Linguagens, Mídia e Arte, doutorando em Psicologia.











