Um dia, alguém inventou de inventar o arrogante conceito de que Deus era brasileiro. Maiakovski aproveitou a onda e decretou que somente nas terras dos nossos ancestrais indígenas havia um homem feliz. O escritor alemão Stefan Zweig nos imputou o epíteto de país de futuro. Ao exagerar na mania de grandeza de quem possui baixa-estima nós nos declaramos nação abençoada por Deus e bonita por natureza. E, interpretando mal o estudo de Sergio Buarque de Hollanda, alguém nos declarou cordiais.
Por que Deus seria brasileiro? Conquistaríamos a glória futura baseado em qual teoria? Por que seríamos contemplados com bênçãos divinas e natureza bonita e não a Nova Zelândia, o Chile, a Inglaterra, a China, o Marrocos? A prerrogativa de acolher o único homem feliz do mundo, talvez, deva-se a momento pouco inspirado do poeta russo; a suposta cordialidade (quem sabe?) deve ter nascido da nossa propensão ao riso fácil, à irreverência e à submissão.
Um dia, igual criança que constata a inexistência de Papai Noel e perde a inocência, descobrimos que Deus não nasceu na Terra Brasilis. Ele a criou, da mesma forma que deu alma a Angola, ao Japão, à França, a Honduras, a Sérvia e a República Tcheca.
Em outro dia, ficamos frustrados (e perdemos a ingenuidade) ao perceber que o futuro tinha chegado e que nós não estávamos lá. E nos demos conta de que homem feliz era narrativa de poeta e que a bênção de Deus andou rareando por aqui.
Até o ufanista Jorge Bem, que levantava sisudas plateias nos tempos dos generais, canta “moro num país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza”, em Miami (onde ele vive) – como se o Brasil tivesse trocado de América.
E, ao longo dos anos, assistimos ao país cordial se transformar em lugar indecente e violento. Assassinamos 50 mil pessoas por ano. Deixamos morrer de fome milhares de crianças e permitimos que o País seja tão rico e tão pobre, contradição de que somos incapazes de desmentir. A pátria amada, talvez, seja o único lugar do mundo onde bala perdida constitui causa de morte.
Elegermos para presidente um homem que enaltece armas, destrói reputações (ou se promove) com notícias falsas, se comunica com linguajar permeado de vulgaridades, queima florestas, espinafra mulheres e gays e atua para extinguir indígenas não foi erro. Foi acerto de contas.
Nós que não tivemos revolução nem guerra civil (nem temos terremotos ou tsunamis) estamos acertando contas com a história. Neste exato momento histórico, eis quem somos: um país sem maquiagem, com a máscara pendurada no pescoço, que nega a ciência, dá as costas para o meio ambiente, ridiculariza os mortos e desmonta a educação.
Somos, hoje, o Brasil encoberto que veio à luz, aquele que tinha medo de admitir seus medos e, agora, se veste de verde-amarelo e sai pelas ruas repetindo as violências do comandante em chefe. O Brasil que não se envergonha de ter preconceito racial, religioso, étnico e de gênero – um ódio sem pudores que ousa declarar o nome.
O nefasto atual governo teve, pois, esse mérito: mostrar que, sim, temos preconceitos.
Matar um rapaz negro no supermercado revelou o tamanho da nossa aversão por eles – desde sempre acuados. Assassinar e agredir mulheres, índios e gays, rotina que vem de décadas, teve uma quase liberação geral. Reconheçamos: o Brasil do Deus brasileiro e do povo cordial era utopia. Este no qual vivemos hoje é o real.
Mas, argumentaria Abraão para Deus, se não haveria ao menos uns dez justos. Ou cordiais? Isentos de preconceitos? Sensíveis? Generosos? Amorosos? Temos muito mais “que dois, que dez, que dez milhões, todos iguais”, cantaria Gil. Justos e cordiais que apostam, confiam e creem na verdade – a verdade de cada um consigo mesmo e com Deus.
Estas são as pessoas que estão sendo chamadas para compor um novo futuro porque, agora, sabemos quem somos – em última instância, que somos humanos e temos as nossas contradições.
Mas também sabemos que somos feitos à imagem e semelhança de Deus, que, em Jesus, Deus se colocou ao nosso lado (o Emanuel, Deus Conosco) e o Espírito Santo fez moradia em nosso corpo – ao qual chamou templo.
Sim, essas pessoas também condenam a hipocrisia, mas têm como lema o amor, a misericórdia, o não julgamento, o perdão, a sensibilidade, a caridade, a generosidade para com todas as mulheres e todos os homens, independentemente da crença, do gênero, da etnia, posição social ou qualquer outra característica que os façam diferentes.
Essas pessoas creem na diversidade e na pluralidade e recebem qualquer um, venham de onde vier.
Só assim encontraremos futuro, e teremos mulheres e homens felizes, e cantaremos com amor e humildade que somos abençoados por Deus e bonitos por natureza, reconhecendo que Equador, Turquia, Alemanha, Índia e Moçambique também são. E, certamente, seremos cordiais – como suíços, cubanos, venezuelanos, espanhóis, coreanos, nigerianos.
E, com toda certeza, Deus aceitará que alguma câmara municipal lhe outorgue o título honorário de Cidadão Brasileiro – mesura nossa, agrado, gesto de louvor, de gratidão. Gestos de quem retorna ao paraíso, de quem volta ao começo. E recomeça.
João Nunes, jornalista e crítico de cinema, é articulista do portal Hora Campinas
♦ O título deste artigo é inspirado no título do filme de Jim Jarmusch (1984)