Logo após a Revolução Francesa a Catedral Notre Dame de Paris esteve à beira da destruição e Victor Hugo escreveu sua obra “Notre Dame de Paris” (O Corcunda de Notre Dame para nós) cuja intenção era salvar a mais famosa e mais visitada Catedral Gótica que existe e onde ocorreram os mais importantes eventos da história da França como, por exemplo, a coroação de Napoleão III em 1804 e o impulso final para liberação dos nazistas em 1945.
Como é possível ter estado à beira da destruição? Temos que examinar o contexto. Como o homem medieval via tudo isto?
A maioria das pessoas durante o período medieval era analfabeta. Porém não eram ignorantes nem despreparados. Não havia demérito como se entende hoje por ser analfabeto. Mesmo que fossem alfabetizados, não havia livros e os livros religiosos ou importantes, como os referentes à lei, eram escritos em Latim, para poucos. A Bíblia, o Antigo e o Novo Testamento, estavam (e estão) totalmente nas Catedrais Góticas, no edifício, na estatuária e, sobretudo, nos vitrais, permitindo uma experiência sensorial completa para consubstanciar a fé cristã.
Os livros religiosos eram geralmente iluminuras, que não são livros, embora pareçam. O analfabetismo somente seria compreendido nos termos que conhecemos hoje com a invenção da imprensa por Gutemberg. Na verdade, a invenção da imprensa acabou com a supremacia das Catedrais Góticas, com o aparecimento das Bíblias de Gutenberg e a modificação da cultura, que era visual e oral, para impressa, alterando completamente a relação dos indivíduos com a informação, dando espaço para o vernáculo, viabilizando não apenas a Ciência, como a Literatura, que foram criadas e eram acessíveis pela massa dos indivíduos.
Embora os personagens ou atores desta obra de Victor Hugo sejam mendigos, o verdadeiro protagonista é a Catedral Gótica Notre Dame de Paris, que estreia o conceito de romance como Teatro Épico.
Um épico gigantesco sobre a história de um povo inteiro, encarnado na figura da grande Catedral como testemunha e protagonista silenciosa onde toda a ideia de tempo e vida contextualiza um panorama orgânico contínuo, centrado em dezenas de personagens capturados no meio dessa história. Este romance abrange toda a vida da França naquele momento, do rei aos ratos de esgoto de Paris.
A preocupação central de Victor Hugo, que era católico não praticante, livre pensador e anticlerical, era salvar o monumento arquitetônico que é o símbolo maior de tudo que a França é das consequências do progresso que a Revolução Francesa trouxe com a Proclamação da República, no fundo, mais um efeito da invenção de Gutemberg.
Para o momento que vivemos, de completa reviravolta nos meios de comunicação pela revolução tecnológica viabilizando liberdade de expressão nas redes sociais e a comunicação livre e instantânea em qualquer lugar, podemos usar como uma alegoria e comparar o que estava acontecendo com o nosso momento.
Hoje, como então, “isso está destruindo aquilo”, o que até ontem era sólido, hoje está se desmanchando no ar.
No caso da Catedral Gótica, em seu romance,Victor Hugo introduz a célebre frase: “Ceci tuera cela”, “isso matará aquilo”, pronunciada por um clérigo que, ao abrir a janela do claustro, voltou os olhos à catedral parisiense e, logo a seguir, ao livro aberto sobre a mesa, lamentou: Isto matará aquilo. No capítulo II do Livro V (Ceci tuera cela – Isto matará aquilo) Victor Hugo explica como a revolução de Gutemberg esvaziou e aniquilou a importância das obras de arte e arquiteturas antigas. As Catedrais Góticas eram os livros da humanidade antes que a palavra impressa tornasse a herança das gerações algo indestrutível, exatamente por ser um instrumento simples, leve e infinito.
A invenção da imprensa teve efeitos dramáticos na civilização europeia. Seu efeito imediato foi espalhar a informação com rapidez e precisão. Isso ajudou a criar um público leitor amplo. A imprensa pelo método de Gutenberg espalhou literatura para as massas pela primeira vez de uma maneira eficiente e durável, empurrando a Europa de cabeça para a era da informação original – o Renascimento, um movimento que mudou tudo, porque as ideias se espalharam mais rápido que nunca e atingiram as massas.
Os novos monumentos deixaram de ser os templos, as igrejas e as pirâmides, e passaram a ser as grandes obras literárias. É nesse enfoque que “O Corcunda de Notre-Dame” foi escrito, para livrar a edificação da ruína. Passados os séculos, o que está sendo destruído hoje é a palavra impressa pelo advento das novas tecnologias de comunicação, da qual se sobressai para o homem comum a Internet e o Iphone.
Vivemos um momento semelhante, pois tanto como naquela época, a modernidade nos jogou num vórtex que nos suga com uma força descomunal e muito além da nossa e é difícil saber onde estamos e para onde vamos.
A forma como Victor Hugo sensibilizou, colocou no imaginário do novo público e salvou a Notre Dame de Paris certamente não é a forma como a grande mídia está pretendendo encontrar seu papel e seu valor no contexto atual, criando uma polarização forçada, dando uma guinada excessiva para a esquerda e sua agenda, emoldurada pela demonização de Bolsonaro, como destruidor apocalíptico e responsável pelo que está acontecendo que, se removido, vai trazer de volta algo que simplesmente já acabou e nunca mais vai voltar.
Roque Ehrhardt de Campos é professor e ex-pesquisador na área de Educação