Como indiquei no primeiro “questionateu”, quando exerço o trabalho clínico e escrevo meus textos, sempre promovendo instigações sobre os pensamentos e os sentimentos, tento convidar as pessoas a um raciocínio crítico.
A mente crítica não se limita à superficialidade; ela tenta se aprofundar, entender as camadas menos expostas, premissas subjacentes, remexer nas entrelinhas, evitando a simplicidade tola e a massificação. E, como mencionei, abre perspectivas para que você interprete seus próprios julgamentos em vez de simplesmente aceitar o que lhe é apresentado. E permite ainda que você duvide de si mesmo…
As questões mais interessantes, que provocam polêmicas saudáveis, não imbuídas de teimosia ideológica, no meu modo de entender, são as ligadas à religião. Por isso, é claro, o neologismo de “questionateu”.
Na tradição cultural ocidental, não se deve colocar em discussão: ideologia política, paixão esportiva e religião. Os anseios fanáticos poriam por terra qualquer boa iniciativa de debate. Considero muito importante contestar essa acomodação. Tudo pode ser dialogado, basta um cuidado protocolar básico, uma atitude diplomática e respeitosa.
Ao longo da nossa história, desde que nos conhecemos por gente, desde que conseguimos fazer os primeiros registros de imagens, lá nas pinturas rupestres, até hoje, no terceiro milênio depois de Cristo, em pleno desvendamento tecnológico, sempre tivemos deuses e, consequentemente, religião.
A religião é muito conveniente, ela consegue explicar qualquer coisa, oferece conforto e, principalmente, salvação. Agregando pessoas, formando paróquias, congregações pastorais, talvez aqui exerça sua mais decisiva função: ela promove coesão social.
O respeitado antropólogo polaco-britânico B. K. Malinowski, no início do século passado, já dizia que não existem povos, por mais “primitivos” que sejam, sem religião ou magia.
O expansionismo colonial dos europeus, desde o século 16, abriu oportunidades diversas. Havia muitos missionários bem-intencionados, com o objetivo de salvar os povos colonizados, que foram divulgando o cristianismo pelo mundo, e exploradores que foram verdadeiros predadores, aproveitando-se das limitações culturais e materiais dos autóctones. Afinal de contas, estes já tinham uma estruturação de crenças, uma base religiosa.
Os colonizadores não tiveram muito que se impor, fazer a cabeça dos colonizados para convencê-los a serem religiosos. Aproveitaram os credos indígenas e introduziram os ensinamentos cristãos. Houve um “upgrade” de noções religiosas…
O trabalho das missões também facilitava o dos dominadores. A conversão ao cristianismo favorecia a rejeição das culturas e crenças indígenas, enfraquecendo as identidades e a coesão social, tornando os originais mais vulneráveis à dominação.
O ensino religioso necessariamente enfatizava a obediência à autoridade, induzindo a submissão aos colonizadores. Durante quase um século (do 19 ao 20), pensava-se que os expedicionários europeus haviam encontrado povos que pareciam não ter deuses ou práticas religiosas formais. Um exemplo importante foi o dos Nuer do Sudão.
Na metade do século passado, no entanto, os estudos antropológicos reviram isso, mostrando que os Nuer tinham muitas práticas mitológicas.
O professor norte-americano J. Campbell, renomado autor de mitologia comparada, falando sobre a natureza dos mitos, com uma bonita carga poética, ofereceu a frase: “Os mitos são sonhos públicos; os sonhos são mitos privados”.
Seja com inspiração romântica ou não, os profundos estudos de Campbell fazem uma importante conexão entre a experiência pessoal do sonho e as narrativas coletivas da cultura de um povo.
Destacar sonhos implica fantasias, ilusões. E, como lembrava Malinowski, magia. Este é o mundo complexo, abstrato e difuso da religião. Ele lida com essa subjetividade do mítico, do ilusório, do fantasioso, da mágica, da crendice. E com o famigerado contexto da fé!
Temos crenças muito construtivas, de grande inspiração caridosa, que jamais prejudicariam alguém. E infelizmente temos algumas que promovem trabalhos nocivos, visando aprisionar ou arruinar pessoas.
É curioso, insólito e até mesmo alarmante deparar com um cartaz de poste: “garanto amarração amorosa”, informando o número do celular…
A pessoa que coordenava um grupo de debate literário evitava abordar temas religiosos. Certo dia, quando o debate parecia caminhar incontrolavelmente para a religião, ela pediu para interromper a reunião. E explicou que tinha muito medo de que logo iriam confundir os mais religiosos dali com quem acreditasse em Papai Noel… Alguns ateus militantes costumam criticar pesadamente a religião.
O filósofo francês M. Onfray entende que as religiões monoteístas (cristianismo, judaísmo e islamismo) são fontes de culpa, pecado e repressão. E que o religioso acredita mesmo em contos de fadas.
O biólogo britânico R. Dawkins aponta que a religião não é somente irracional, mas também prejudicial à sociedade. Para ele, não haveria a coesão social promovida pela religião.
Então, nós não temos a experiência coletiva de viver sem religião. Uma minoria tem essa posição. Cerca de 15% (no máximo) das pessoas no mundo hoje são descrentes. E convivem com a enorme maioria religiosa!
No passado, especialmente durante a vigilância repressora da Inquisição, se havia algum não crente, ele era discreto, disfarçado ou recluso…
Felizmente, hoje, o descrente, a não ser em países de elevado rigor moral e doutrinário, pode expor suas ideias, publicar seus argumentos sem censura ou preocupações.
Entendo que faz falta para nós, seres humanos, uma vivência de sociedade não religiosa. Seria ótimo para compararmos a coesão social que conseguiríamos sem religião com a que estamos habituados a observar.
Precisamos de sonhos para motivar a vida. De mitos, não. Meu sonho pessoal é conseguir uma sociedade sem mitos! Voltaremos ao tema!
Joaquim Z. Motta é psiquiatra, sexólogo e escritor.