À medida que o mundo olha para o outro lado da pandemia da Covid-19, há uma oportunidade clara de reexaminar as questões sistêmicas que fundamentam – ou minam – a saúde global, incluindo a equidade em saúde, a justiça social e a fortalecimento dos sistemas de saúde. Um fator-chave para as lacunas sustentadas na equidade em saúde e na justiça social é a “comercialização” da saúde, tanto em seu financiamento quanto na prestação de serviços.
O direito à saúde tem sido marginalizado através do mundo, mesmo quando esses direitos estão codificados em constituições nacionais como no caso do Brasil. Em resposta à ameaça contínua de degradação dos sistemas de saúde é fundamental fazer um apelo por sistemas de saúde pública fortalecidos que sejam centrados no paciente e no trabalhador, reflitam uma distribuição justa de recursos e desafiem as narrativas coloniais de tomada de decisão e poder.
Governos e instituições internacionais envolvem consistentemente o setor privado em esforços para construir e fortalecer sistemas de saúde. A lógica predominante é que o setor privado poderia fornecer melhor acesso, eficiência e qualidade. No entanto, após quase meio século dessa abordagem, evidências de todo o mundo mostram que a política de financiamento da saúde foi, em grande parte, para servir a seus interesses econômicos.
Na Índia, por exemplo, políticas pró-privatização que datam da década de 1990 levaram ao crescente setor privado de saúde do país, que não conseguiu cumprir as metas do país. Assistimos o desastre naquele país durante a pandemia. Atualmente na Índia, 70% de todos os pacientes são tratados no setor privado e 70% de toda a força de trabalho da saúde atua no setor privado.
O custo da hospitalização, entretanto, é seis vezes mais caro em hospitais privados do que em hospitais públicos, ainda que o governo receba inúmeras reclamações sobre negligência médica nesses estabelecimentos. Enquanto isso, o sistema nacional de saúde pública ficou subfinanciado (apenas 1,2% do PIB do país financia a saúde, muito abaixo da média global de 5%), resultando em instalações de saúde pública sobrecarregadas. No entanto, o setor privado na Índia continua mal regulamentado e os principais esquemas de seguro saúde lançados sob o pretexto de Cobertura Universal de Saúde ignoram evidências críticas e dependem de hospitais privados.
O Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil — reconhecimento formal do Direito à Saúde constitucional do país — é o maior sistema público de saúde de acesso universal do mundo, cobrindo uma população de 210 milhões. Embora todas as pessoas que vivem no Brasil tenham direito a assistência à saúde gratuita, os dados de gastos com saúde refletem um sistema duplo que surgiu diante do engajamento do setor privado.
Dos 9,6% do PIB total gasto em saúde , apenas 3,8% vão para o SUS. A maioria dos gastos vai para os seguros de saúde privados, que cobrem cerca de 25% da população, e gastos diretos, especialmente em medicamentos. O SUS sofre de subfinanciamento, falta de políticas fortes de força de trabalho e custos crescentes. Embora subfinanciado, o sistema público alcança muito mais do que a assistência médica.
Apesar das conquistas do SUS — até mesmo anunciadas pelo Banco Mundial — a comercialização na saúde acelerou. Em particular, a terceirização da gestão do sistema público para o setor privado por meio, por exemplo, de Organizações Sociais de Saúde diminui o controle público sobre o sistema, cria fragmentação e não tem mostrado de maneira definitiva vantagem sobre o modelo público.
Certamente, o problema não está apenas no modelo que poderia ajudar e desburocratizar um pouco a prestação de serviços de saúde, mas na má utilização dos recursos e a delegação deste sistema para alguns grupos e instituições que não colocam o interesse público em primeiro lugar.
Mesmo em países com sistemas de saúde robustos e recursos para a saúde, como em muitos países europeus, a privatização e as práticas comerciais restringem o acesso à assistência médica e, particularmente no setor hospitalar, os pacientes mais lucrativos são priorizados, infelizmente .
Nos Estados Unidos, um sistema dominado por interesses privados, os gastos com assistência médica superam a média da OCDE em quase 10%, mas os resultados de saúde continuam sendo ruins, com o peso recaindo em grande parte sobre migrantes e pessoas mais pobres.
Para alcançar a verdadeira saúde para todos, são necessárias urgentemente soluções ousadas que centrem nos direitos humanos e a equidade.
• Os governos devem centralizar a justiça e os princípios dos direitos humanos e reconstruir sistemas de saúde equitativos;
• A equidade exige participação de toda sociedade na saúde, por meio da qual a política de saúde e os mecanismos de responsabilização associados sejam desenvolvidos e implementados coletivamente, com participação pública;
• Esforços significativos em direção à justiça financeira podem gerar o financiamento necessário para sistemas de saúde pública fortalecidos, normalmente por meio de mecanismos estabelecidos, como tributação progressiva e políticas fiscais redistributivas que beneficiam toda a sociedade.
A assistência à saúde privatizada ainda não cumpriu suas promessas a todas as pessoas. O paradigma atual é, como demonstrado em todo o mundo, prejudicial à saúde das pessoas e prejudicial aos esforços para alcançar saúde para todos. Conforme previsto na Declaração de Santiago para Serviços Públicos , os direitos humanos devem ser garantidos para todos. Esta é uma discussão fundamental ao futuro do SUS, conquista civilizatória do Brasil e exemplo ao mundo.
Carmino Antônio de Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020. Secretário-executivo da secretaria extraordinária de ciência, pesquisa e desenvolvimento em saúde do governo do estado de São Paulo em 2022 e atual Presidente do Conselho de Curadores da Fundação Butantan. Diretor científico da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH).