Estou sem vontade de escrever uma única palavra que seja. Nem o pequeno verbo ir. Sair por aí é uma boa ideia, mas os malucos ideológicos estão nas ruas. O presidente da república está nas ruas. Aliás, ele usou o avião presidencial para fazer política em São Paulo. E isso é proibido. E daí? Alguém vai reclamar no Congresso? Ou melhor: algum promotor público vai denunciá-lo por usar um patrimônio público para seus interesses pessoais?
Saio pela manhã para fazer a minha primeira caminhada. E tomei cuidado para não vestir uma camiseta amarela. E nem vermelha. E assim vesti uma camiseta branca e uma bermuda preta. E lá no Taquaral, caminhando pela Arautos da Paz vi dois jovens carregando uma faixa: pontepretano não apoia Bolsonaro. E eu lá, vestido de preto e branco, com as cores da minha amada Nega Véia.
O que fazemos com nossas convicções? Eu já não faço mais nada. Apenas as carrego e as protejo.
E vou em frente, caminhando cada vez mais lento, respeitando os joelhos, e lembrando das últimas peladas que participei ao lado do Kabelo, Carcani, Paulo Planta, Moacir, e de muitos garçons que chegavam com velocidade e serventia. E assim vou devagar e degustando lembranças.
Não vou mais jogar bola com os amigos. O ar já me falta, o cérebro imagina e os músculos não mais entendem a velocidade da bola. E assim ando pelas calçadas chutando uma pedrinha aqui, outra acolá, e sempre, antes de sair pelo passeio da tarde, encontro a menina Hanna no pátio do prédio. E por alguns minutos brincamos de chutar pelota. E assim me convenço que estou envelhecendo.
Crianças nos ensinam a envelhecer. E os velhos não sabem como explicar a natureza das coisas às crianças. E assim o envelhecer é feito de pequenos gestos, chutar uma bola, oferecer um colo, cantar uma canção, oferecer um doce ou apenas um olhar de gratidão.
Tenho cá os olhos castanhos do meu avô materno, um senhor de elegância que vendia paçoca e amendoim pelas ruas do Taquaral e Cambuí.
Não pela necessidade, mas pelo prazer do trabalho, de vender o que fazia, de ocupar o seu tempo, de andar por aí. E assim ando por aí. Tive um bom avô que me ensinou a andar pelas ruas da cidade. E isso faço até hoje. E também aprendi o ofício de olhar as coisas da cidade, suas praças, ruas e esquinas. E também a honrar os santos das igrejas e os homens de mãos estendidas por alguma moeda.
E eu tenho, até hoje, meus companheiros de esmolas. E eles me conhecem e eu os conheço. E somos amigos de mãos estendidas, uma que recebe e outra que entrega. E o sinal abre e o trânsito segue, implacável, frio e matemático. E o pedinte e eu ficamos de mãos solitárias. E o semáforo é o senhor de nossas razões.
Busco razões e acho que o melhor a fazer é voltar pra casa. E assim entro na casa dos meus pais. E eles não estão lá. Nem os meus irmãos. E a casa não existe mais. Nem a mesa da cozinha. Nem o fogão. Nem o aroma da comida.
Apenas paro o carro em frente e olho um grande muro. Todas as casas agora têm um grande muro. Não são mais casas; apenas um comércio, um escritório, uma coisa ou outra de aluga-se ou vende-se. Não há crianças na rua Américo de Moura. Tudo é um silêncio monástico. Não há mais senhoras conversando na calçada. Apenas as poucas árvores da rua dançam suas solidões aos balanços dos ventos. E assim retorno ao meu canto de lembranças.
Olho a tela do computador e ele me anima a escrever na sua pele virtual. E assim começo agradecendo às lembranças que ainda carrego pelos velhos neurônios. Felizmente, o branco não foi assim tão idiota.
Zeza Amaral é jornalista, escritor e músico