A Campinas que chega neste mês aos 247 anos não é a mesma do passado. Protagonista de sua história, a cidade foi obrigada a redefinir o seu papel em momentos cruciais. Enfrentou epidemias nos séculos 19 e 20, encarou as tropas federais de Getúlio Vargas em 1932 e foi sacudida por escândalos políticos em passado recente – para ficar em três exemplos emblemáticos. Episódios díspares em seu DNA, mas que tiveram algo em comum: a percepção coletiva de que era preciso superar essas adversidades, em movimentos capitaneados por líderes e segmentos importantes. São conhecidos o simbolismo e a imagem da fênix, ave mitológica que ostenta o brasão de Campinas, ao centro, em posição de destaque. Na base dessa mensagem, a força do renascimento.
A pandemia do novo coronavírus, que alcança sofridos e longos 16 meses, impactou vidas e rotinas, realinhou as forças do desenvolvimento e redesenhou prioridades das esferas pública e privada. A cidade, pujante, foi duramente castigada, como todo o País. Motor econômico, Campinas viu receitas despencarem, assistiu ao drama de negócios se esvairem e deu adeus a vidas campineiras. Todas elas importam. Todas elas sentidas, a despeito de um ignóbil sentimento de desprezo e minimização, disseminado e reverberado País afora.
Polo tecnológico, econômico, científico, educacional e cultural, Campinas reúne virtudes reconhecidas internacionalmente. E essas qualidades, agora, terão de ser colocadas à prova. A melhor contribuição para o futuro de Campinas é entregar o seu melhor no presente.
Essa é a análise de três profissionais de notório conhecimento ouvidos pelo Hora. Cada um em seu segmento de atuação, eles entendem que a cidade precisa unir as forças de representação política e social, de forma estratégica, para buscar soluções para os desafios provocados pela Covid-19 em vários setores da sociedade. São respostas pontuais, não necessariamente, grandiosas. Mas a Campinas que celebra os seus 247 anos encara um de seus maiores desafios: reestruturar o cotidiano nas escolas públicas e privadas, assegurar uma mobilidade urbana no transporte coletivo de forma segura, facilitar a reorganização empresarial, no sentido de dosar os encargos, fomentar renda e emprego por meio de políticas inteligentes e solidárias e qualificar o “novo normal”, promovendo uma orientação eficaz para aquele que imagina, erroneamente, que o futuro será de flexibilização completa dos protocolos sanitários. Não será!
Emprego e renda
Na esfera econômica, a reestruturação não implicará numa volta robusta e sustentada da riqueza e do consumo, na opinião da professora de Teoria Macroeconômica da PUC-Campinas, Eliane Rosandiski. Extensionista na área de Trabalho e Renda do Observatório da PUC, a docente observa que haverá inegavelmente um movimento importante em alguns segmentos, sobretudo aqueles que geram circulação, hoje privados e bastante prejudicados. É o caso das áreas de turismo, entretenimento, bares e restaurantes.
“Não voltaremos ao nível pré-crise”, pontua. “O próprio empobrecimento da população vai prejudicar a retomada”, acrescenta.
Ela dá como exemplo os shoppings; para gastar numa visita aos centros comerciais, esse cliente teria de ter o padrão de consumo de volta, o que não ocorrerá rapidamente. “Parte das famílias está endividada. Não vai ser uma recuperação em V. Vai andar meio de lado”, afirma, referindo-se ao movimento de queda rápida e crescimento acelerado. O Brasil tem hoje 14,8% de sua população desempregada. Na Região Metropolitana de Campinas (RMC), são perto de 241 mil pessoas nessas condições, lembra a professora da PUC-Campinas.
Eliane Rosandiski observa que a própria recuperação econômica será desigual. Setores melhor estruturados terão desempenho mais qualificado, cita. “O segmento mais desprotegido foi o que mais sofreu”, completa.
Saídas e propostas
A extensionista do Observatório da PUC-Campinas coloca algumas ideias que, na esfera municipal e regional, poderiam ser adotadas para gerar renda e organizar setores. Ela concorda que fóruns como o Conselho de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Campinas (RMC) e a Agemcamp são os espaços adequados para o debate de soluções. “Essa articulação é essencial para otimizar os recursos públicos”, alerta.
Neste sentido, defende políticas locais de inclusão para promover programas de trabalho e renda. Ela dá como exemplo os mutirões de construção urbana e as cooperativas de recicláveis, por exemplo. “Não é só atrair as grandes empresas. A política de desenvolvimento eficiente é encontrar soluções para todos os tipos de grupos”, discorre. Ela diz se preocupar com os “invisíveis”, aqueles com baixa qualificação e padrão econômico precário. Para a professora, as prefeituras poderia ser agentes organizadores desses programas.
Na RMC, enxerga Campinas e Paulínia, por seus orçamentos, como potenciais líderes desse movimento.
Cenário mais positivo
Com o avanço da vacinação, a professora vê o final do ano como um cenário mais positivo. “Eu confio na trajetória da vacina”, confirma, mas adverte para a força dos negacionistas, que poderiam atravancar o índice de 70% a 80% da população imunizada. “Não podemos ficar neste debate polarizado infinito”, espera. A professora finaliza reforçando a importância de o governo federal manter um auxílio emergencial digno, ajuda que também poderia ser articulada pelas prefeituras e governos estaduais, menciona.
Imunização essencial
O empresário Luis Norberto Pascoal é um empreendedor. Acostumou-se ao longo de sua jornada a encarar tormentas e a superá-las. A primeira foi o seu próprio debutar no universo empresarial, nos anos 70, após a morte de seu pai, o que o levou à presidência da companhia ainda jovem, aos 23 anos. Hoje, a DPaschoal é o pilar de um conglomerado de empresas, de vários segmentos econômicos, com missão e valores bastante transparentes e adaptados aos novos tempos. É também um conjunto de empresas que prezam as boas práticas da governança, inclusive com uma fundação que apoia causas educacionais e ações de protagonismo empreendedor.
Para Pascoal, o ideal seria a formação de um pacto das forças vivas campineiras para discutir soluções concretas para a retomada, um fórum que pudesse traçar caminhos e aprofundar medidas. Ele diz que uma mobilização focada nesse tema faria todo o sentido, mas vê dificuldade na operacionalização “Campinas está fazendo um grande esforço, mas a sociedade não está contribuindo corretamente. E a sua pergunta sobre o pacto, faz todo sentido. Mas um pacto é bem complicado de ser feito”, pontua, referindo-se ao desrespeito aos protocolos sanitários, invariavelmente flagrados nas ruas e em espaços coletivos.
Ele é bastante prudente em relação ao assunto da retomada. ” Estamos longe do pós-pandemia e precisamos de muito cuidado para que a vacinação ocorra em todas as pessoas (pelo menos 75%) e que as vacinas realmente consigam imunizar bem”, defende Pascoal, cobrando alcançar a chamada imunidade de rebanho para que qualquer movimento estruturado de reorganização tenha êxito.
Sobre as virtudes de Campinas e sua condição privilegiada de polo tecnológico, o empresário concorda com as vantagens de uma cidade diferenciada. Mas faz adendos. “Realmente Campinas é uma cidade privilegiada e seu capital tecnológico pode ajudar muito nesta nova fase que o mundo entra. Mas pra isso acontecer devemos estimular grupos de empresários e centros de pesquisa “hubs” de apoio às novas tecnologias, considera, ressaltando que a transformação digital, necessária, é uma das estratégias para a superação desse momento.
“Vejo o papel do empresário como fundamental na construção de uma sociedade mais resiliente e inovadora, e isso pode ser qualquer tamanho de empresa. A criatividade não depende da vacina. É preciso espírito empreendedor. Campinas sempre foi um exemplo no Brasil e no mundo e agora está na hora de mostrar essa sua competência”, finaliza Luis Norberto Pascoal
Os erros na pandemia
Falta de comando central, negacionismo, fake news, desprezo à ciência, estímulo às aglomerações, falhas no planejamento para a compra de imunizantes e comportamento hostil aos protocolos sanitários e aposta em remédios sem eficácia comprovada. O combo de erros que o Brasil acumulou ao longo da pandemia do novo coronanívus é vasto e multifacetário. E é esse retrato de atrasos e descompassos de gestão que explica a tragédia brasileira da Covid-19, com mais de 500 mil mortos, na análise da infectologista Raquel Stucchi, professora da disciplina de Infectologia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro da Sociedade Brasileira de Infectologia.
“Não foi por falta de capacidade e de inteligência. Não foi porque não teve informação suficiente. O País não soube lidar com a pandemia”, afirma a infectologista
Para ela, o impacto do negacionismo coletivo e do comportamento nocivo do presidente Jair Bolsonaro foi capital. “Essa atitude que não valorizou a ciência e que não se preocupou com a vida foi decisiva”, reforça. Raquel lembra que o Brasil tinha uma vantagem no início dos primeiros casos, que ocorreram na China e migraram para a Europa. Nesse intervalo, diz ela, era preciso preparar o País para o enfrentamento, o que não ocorreu. “O desserviço explica a tragédia”, define.
Vacinação é importante, mas não só ela
Raquel Stucchi é bem clara quanto à vacinação. Ela reforça a importância da imunização completa e de se atingir um patamar de até 70%/80% da população, mas ressalta que as variantes e o próprio tempo de vacinação dos primeiros grupos (pessoal da Saúde) podem tornar esse mecanismo não totalmente eficaz. “A vacina é importante, mas tem que vir acompanhada de protocolos, como distanciamento e uso de máscaras”, enfatiza. “Tenho que esperar a diminuição sustentada dos novos casos e a queda nas internações”, menciona. Ela alerta para a falsa segurança e o excesso de confiança gerados pela vacina, sem que a pessoa faça a sua parte com o comportamento responsável.
“Doenças infecciosas passam pela vacinação. Ou eu preciso ter medicação que cure ou controle”, acrescenta, lembrando dos esforços da Saúde pública para controlar a tuberculose, a hepatitite C e o HIV.
Campinas, uma referência
A infectologista, considerada uma das maiores autoridades do País em sua área, fez um elogio público ao trabalho da Saúde e da Vigilância em Campinas mencionando o papel da diretora do Devisa, Andrea Von Zuben. Para ela, a gestora e toda a equipe da Pasta têm demonstrado extrema organização, aproveitando muito bem a já boa estrutura do setor na cidade.
“A Vigilância tem uma experiência muito grande e faço aqui um elogio público. Campinas, sinceramente, se destaca, inclusive no Brasil, no enfrentamento da pandemia”. observou. “O planejamento e a execução foram exemplares”, completa, incluindo o esforço da vacinação, que tem colocado Campinas na ponta dos rankings que consideram cidades acima de 400 mil habitantes.
Raquel Stucchi acredita que falhas pontuais aconteceram em Campinas, como, por exemplo, na sua visão, a flexibilização ocorrida no final de abril e início de maio deste ano. “Era um momento inadequado do ponto de vista epidemiológico”, recorda, sinalizando que a cidade enfrentava forte pressão econômica em virtude das perdas de vários segmentos, entre eles comércio e bares e restaurantes. Mas o saldo, resume, é positivo.
A pedido do Hora, a infectologista deixou uma mensagem aos campineiros que gostariam de celebrar o aniversário da cidade em eventos públicos ou que desejam apressar os encontros sociais. “Uma comemoração como a cidade merece, só em 2022”, defende. “Se gostamos da nossa cidade, devemos agir com responsabilidade”, prega a professora da Unicamp.
Ela reforça que o momento atual pede a manutenção das regras sanitárias, como máscaras e distanciamento. “Temos que contribuir”, alerta.