No último dia 11 de julho foi lembrado o centenário de nascimento de um dos maiores nomes da ciência brasileira: César Lattes, como ficou conhecido o curitibano Cesare Mansueto Giulio Lattes. Um cientista com trajetória muito ligada a Campinas, e em particular à Unicamp, como um símbolo da projeção que a cidade tem em ciência, tecnologia e inovação.
Nascido em 1924, logo aos 23 anos César Lattes estava fazendo a experiência que marcaria a sua biografia. Em 1947, dois anos depois de encerrado o horror da Segunda Guerra Mundial, ele estava a mais de 5 mil metros de altitude, em Chacaltaya, nos Andes bolivianos, usando chapas fotográficas para captar os raios cósmicos. Inovando em relação a experimentos anteriores, ele adicionou bórax às chapas.
Com esse método, em condições precárias, o brasileiro que não conhecia limites identificou partículas méson Pí, até então ainda estudada como teoria científica. Expostas à radiação solar, as chapas mostraram a desintegração do méson em múons e neutrinos.
Em 1948, um passo à frente, com as experiências de Lattes e Gardner no cíclotron de Berkeley, na Califórnia, levando à liberação do Méson Pí. Por suas descobertas, Lattes deveria ter ganho o Prêmio Nobel, que no entanto ficou para Cecil Powell, chefe do laboratório de Bristol, na Inglaterra, onde o brasileiro também fazia pesquisas.
Reconhecido internacionalmente, César Lattes foi um dos idealizadores do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), fundado a 15 de janeiro de 1951. Na segunda metade da década de 1960, ele aceitou um novo desafio, o de contribuir para a instalação da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp.
Os primeiros tempos na Unicamp foram passados no casarão da rua Culto à Ciência, que havia sido residência de Bento Quirino e que foi o último projeto em Campinas assinado por Francisco de Paula Ramos de Azevedo, antes de se fixar em definitivo em São Paulo para ganhar fama nacional. Naquele casarão foi instalada, temporariamente, a Faculdade de Engenharia de Campinas, criada no final de 1966 e que começou a funcionar no início de 1967.
Eventualmente, César Lattes expunha as famosas chapas que trouxe da Bolívia em seu laboratório improvisado, no porão do casarão da Rua Culto à Ciência, tendo como auxiliares alunos de vários cursos, inclusive os de Engenharia Mecânica. O cheiro das placas vindas dos altiplanos bolivianos era forte devido aos produtos químicos utilizados em sua confecção e alguns alunos chegaram a desistir de auxiliar o mestre Lattes. Em 1968 a experiência foi repetida com a participação da equipe de César Lattes e do físico japonês Yoichi Fujimoto.
Depois de muitos anos atuando na Unicamp, enquanto colaborava com outras instituições, César Lattes faleceu em Campinas, em 2005. Como uma das homenagens que recebeu, ele dá nome à plataforma de currículos da ciência brasileira mantida pelo CNPq que ajudou a criar. Por ocasião de seu centenário de nascimento, obviamente o nome de César Lattes foi muito citado na imprensa, local e nacional, mas com certeza a sua biografia e o que fez pela ciência merecem muito maior reconhecimento, inclusive da cidade que o acolheu.
Pois a presença de César Lattes em Campinas, sua ligação com a Unicamp, diz muito sobre a notória vocação da cidade para o desenvolvimento científico. Uma vocação que, é bom repetir, já tinha sido sinalizada pela participação na história local de nomes como Hércules Florence, Landell de Moura e Santos Dumont, entre outros. Grandes inventores, pessoas que brilharam porque ousaram, não temeram o novo.
A vocação foi depois confirmada, com o funcionamento do Instituto Agronômico de Campinas e depois do ecossistema de ciência, tecnologia e inovação construído a partir da PUC-Campinas e Unicamp. Essa evolução é conhecida e a cidade continua atraindo novos investimentos importantes nessa área, como o Sirius e, recentemente, o Orion, laboratórios de ponta e únicos em escala global dentro de suas atividades. As fontes de luz do Sirius, em especial, potencializam pesquisas na ciência quântica da qual Lattes foi um dos pioneiros.
Mas permanecem desafios, com certeza. Um deles é o de que as históricas instituições científicas localizadas em Campinas continuem recebendo todo o apoio necessário para continuar seu trabalho, em termos de recursos financeiros e humanos. A sombra do negacionismo científico, que infelizmente ainda não foi totalmente afastada do horizonte, não pode nunca afetar a liberdade de produção da qual a cidade sempre se orgulhou.
O caso do Instituto Agronômico é um exemplo de que algumas instituições científicas e tecnológicas públicas situadas em solo campineiro deveriam receber muito maior atenção do que ocorre atualmente. Por vários fatores, essas instituições têm sofrido com a falta de recursos e com movimentos como o êxodo de profissionais que acabam não recebendo o reconhecimento merecido.
Outro desafio notório é o de que o status adquirido pelo ecossistema de ciência e tecnologia local e regional não se reflete, da mesma maneira, em alguns indicadores na educação básica. Há muitas lacunas, em particular no ensino médio, mas também no fundamental.
Em 2025 terminará a vigência do atual Plano Municipal de Educação. Provavelmente muitas de suas metas não terão sido atingidas ou serão atingidas apenas parcialmente, o que demandará importante reflexão e mobilização da sociedade.
Seria possível o sistema de ensino superior em Campinas e o polo científico em geral contribuir para melhorar os indicadores do ensino básico da cidade?
Com relação ao próximo Plano Municipal de Educação, não será o momento de ousar ainda mais e de incluir metas importantes por exemplo em educação socioambiental (fundamental no cenário atual de agravamento dos impactos das mudanças climáticas), com o apoio do ecossistema de ciência, tecnologia e inovação?
Outro desafio relevante, associado ao polo de ciência e tecnologia de Campinas, é justamente este, o de contribuir cada vez mais para o desenvolvimento sustentável local, nacional e internacional. O Brasil e o mundo demandam cada vez mais soluções rápidas e eficientes em termos de transição energética, de enfrentamento das mudanças climáticas e erosão da biodiversidade, de qualificação do sistema público de mobilidade, de avanços no combate às atuais e a novas patologias e síndromes, entre outros desafios.
Em síntese, a ciência produzida em Campinas, com a colaboração de nomes fundamentais como César Lattes, já fez e pode fazer muito mais pelo país e para a humanidade. Mas que seja sempre uma ciência voltada para a promoção e proteção da vida, pela valorização dos bens comuns, contribuindo para superar as graves injustiças sociais que a cidade e o Brasil ainda exibem.
José Pedro Martins é jornalista, escritor e consultor de comunicação. Com premiações nacionais e internacionais, é um dos profissionais especializados em meio ambiente mais prestigiados do País. E-mail: josepmartins21@gmail.com











