Um adolescente indígena de 12 anos, recém-completados, foi até um posto de vacinação, em Campinas, nesta quarta-feira (19), receber a primeira dose do imunizante contra a Covid-19 carregando um arco e flecha, além de usar pintura facial e ostentar um cocar, famoso ornamento de cabeça, característico dos povos indígenas. O uso da indumentária é uma forma de ressaltar o orgulho das origens e uma forma de mostrar que mesmo estando fora das comunidades ou aldeias, eles continuam sendo indígenas e carregando suas tradições.
Ele e a família são da etnia Guarani Mbya, e moram há quatro anos, na Vila Lafayette Álvaro, na região do Jardim Flamboyant. O menino Anthony Aluísio de Barros que tem o nome indígena Tony Mirim, que significa pequeno, foi levado pela avó Luciana Denize Caetano, de 46 anos, conhecida como Lu Ahamy, para receber a primeira dose do imunizante da Pfizer no Centro de Saúde Parque Floresta, no período da manhã.
“Foi um pouco complicado de fazer o agendamento porque antes ele tinha 11 anos e não podia receber a vacina, agora que liberou para essa idade, completou 12 anos, só achamos vaga bem longe de casa, mas fizemos todo o esforço porque é importante ele ser imunizado”, diz a avó.
Lu Ahamy não esconde o orgulho de ver o neto carregando as raízes e tradições de seu povo.
“Meu neto ir paramentado para ser vacinado como uma criança indígena é uma vitória para nosso povo. Foram muitas dificuldades que nós e nossos parentes passaram para chegar até esse momento”, diz. A avó, além de fazer a pintura do neto, também foi caracterizada com pinturas e cocar.
“Somos um povo muito tradicional, eu utilizo a pintura no dia a dia. Onde eu vou estou sempre pintada, principalmente a pintura facial, com uma primeira linha que atravessa os olhos e o nariz de lado a lado. É uma pintura de proteção. Usamos o jenipapo para fazer o traço preto, e o urucum, que faz o vermelho. Isso é utilizado quase todos os dias. É uma coisa nossa”, explica.
Feliz e aliviado
Tony Mirim conta que ficou aliviado com a vacinação e orgulhoso pela sua manifestação. “Eu me sinto feliz porque finalmente eu pude tomar a vacina para poder ficar imune contra esse vírus. É muito bom ser indígena. Eu achei importante eu ir do jeito que eu sou porque assim eu posso mostrar quem eu sou de verdade. Manter minha cultura é a valorização, manter vivo o meu povo”, diz.
Os dois não passaram pelo centro de saúde sem serem percebidos. “Na verdade, todo mundo parou tudo e veio receber a gente, com curiosidade, foi muito bom o acolhimento deles. Foi engraçado porque até então meu neto não tinha visto essa reação. A gente percebe que o acolhimento foi de curiosidade, de pessoas diferentes estarem ali, e eles fazerem parte disso. Fizeram muitas perguntas, ficaram curiosos, isso é bom, é importante. Através da curiosidade vem o conhecimento, e isso acaba com a ignorância”, afirma Lu. Funcionários até registraram em foto esse momento especial no CS. Antes de Campinas, ela, o neto, e o marido, da etnia Pataxó, moravam em Bertioga, Litoral do estado.
Povo originário
“O Guarani é um povo originário do Paraguai, Argentina e Uruguai. Quando migraram, passaram a se localizar no Litoral brasileiro. Tem bastante em Santa Catarina, Rio de Janeiro e São Paulo. A gente é de Bertioga, aldeia Rio Silveira”, conta. O marido dela trabalha em uma rede de pizzaria, com unidades em diversas cidades, e veio para Campinas assumir a chefia de uma unidade que fica em um shopping.
A família comparecer no centro de saúde com seus adornos culturais também é visto como um sinal de resistência. “Isso porque no começo, quando surgiu a vacina, não queriam nos dar. Usavam a palavra não aldeado. Como se por estar fora da aldeia a gente deixasse de ser indígena. Só por estarmos no contexto urbano. Mas em todo lugar que eu vou, dentro ou fora da aldeia, eu continuo sendo indígena”, ressalta.
Articulação
Pelo entendimento inicial, os indígenas que moravam fora das aldeias ou comunidades, não teriam prioridade na vacinação. O que representava um risco, já que circulam por esses locais, e os membros têm uma situação imunológica diferente do restante da população em geral.
Lu Ahamy é uma liderança indígena, à frente do coletivo EtnoCidade, que dá visibilidade aos indígenas no contexto urbano. Assim, ela passou a articular junto à Secretaria Municipal de Saúde, para que os indígenas não aldeados também fossem imunizados logo no início.
“Eu mostrei que, de acordo com o censo de 2010, Campinas é a terceira cidade do estado com mais indígenas em contexto urbano. Eram 1.042, sem contar os estudantes indígenas da Unicamp, que chegaram a partir de 2019”, conta.
A articulação deu certo. A partir de articulação dela e da Unicamp, os indígenas foram vacinados em dias e horários específicos no Centro de Convivência do Idoso (CVI), no Taquaral.
Histórico
Márcia Regina Máximo era a coordenadora do CVI, na época, em fevereiro de 2021, e conta que os indígenas em contexto urbano não estavam contemplados com prioridade na vacinação, inicialmente. “Mas Campinas bancou fazer isso porque essas pessoas circulam nas universidades, na cidade e voltam para as aldeias. Na época recebemos uma listagem de 44 estudantes indígenas da Unicamp e vacinamos as famílias também. Deu mais de 100 pessoas. Vacinamos de 18 a 20 de fevereiro. A Unicamp levava em ônibus. Depois recebemos a listagem dessa líder indígena e eles iam todos caracterizados”, recorda.
A coordenadora afirma que a experiência foi bem interessante, de gratidão.
“Primeiro foi um susto porque não parava de chegar ônibus, era um atrás do outro, não tinham cadastro. A gente tinha que pegar a documentação e fazer tudo do zero. Mas foi muito interessante, muito gostoso, são culturas diferentes, mas o mesmo sentimento de gratidão da parte deles. Eles faziam rituais, cantavam para abençoar a gente. Foi muito gostoso”, afirma Márcia.
Contexto urbano
Lu Ahamy reforça que os indígenas em contexto urbano continuam sendo indígenas, apesar de algumas dificuldades. “A gente mantém a nossa tradição com os nossos artefatos, com nossos rituais, mas tem coisas que se faz na aldeia todo dia, que são mais difíceis no contexto urbano. Nem sempre a gente pode acender nosso petinguá, que é o cachimbo sagrado. É um dos mais sagrados para a gente, para os momentos de conexão. Nossa luta, com o coletivo EtnoCidade é ter um espaço para receber os parentes (todos os indígenas são chamados de parentes), para os rituais de gratidão, canto dança, entre outros”, explica.
O coletivo faz ações sociais para indígenas e não indígenas. Nos seis primeiros meses da pandemia foram distribuídos 100 marmitex por dia para as pessoas que precisavam. Atualmente, são distribuídas cestas básicas, frutos de doação. O coletivo também apoia os estudantes indígenas da Unicamp.
“Eles vêm com a roupa do corpo e uma mala pequena. A gente vai atrás de tudo para ajudá-los com o que precisam. Foi uma vitória muito grande a Unicamp abrir as portas das faculdades para eles”, finaliza Lu.