A espinha dorsal do roteiro de Deserto Particular (Brasil/Portugal, 2021, 120 min.), escrito pelo diretor Aly Muritiba em parceria com Henrique Santos, tem alicerces na psicanálise de Freud, para quem existe “disposição bissexual inata ao ser humano” – mais tarde, ele afirmaria que corpos bissexualmente construídos atendem à demanda cultural. Ao mesmo tempo, o roteiro desdenha o princípio de fé estabelecido pelos evangélicos a respeito da “cura gay”, supõe-se, por insuficiência de base científica – de fato, cura gay não existe. Contraditoriamente, mesmo sem respaldo freudiano, para a bissexualidade enrustida e violenta de Daniel (Antonio Saboia), policial acusado de agressão a um rapaz gay, sim, há cura.
Daniel teria interesses homossexuais por causa da tal disposição bissexual inata. Entretanto, apaixonado, deixará a violência contra homossexuais. Não duvidemos da força do amor. Ele é, mesmo, capaz de transformações implausíveis.
Contudo, mesmo a improbabilidade do amor necessita de sustentação mínima. Deserto Particular aposta no encontro dos diametralmente opostos: o mito gay do policial masculino forte, seguro, imponente (quase super-herói) jogado aos pés do masculino sensível, gentil e amável travestido de mulher, o suposto sexo frágil.
Não surpreende que a bissexualidade do policial se refugie na figura detentora do dom de iludir, conjunção do masculino com o feminino, em vez de se direcionar para o lado mais tormentoso dele, o seu igual homossexual.
Ocorre que a atração pelo feminino no corpo do ser masculino esconde a própria porção feminina “que até então se resguardava”, enquanto o papel da ilusão é iludir, fazer parecer “normal”, tornar-se mais palatável. Tanto que, ainda devidamente resguardado, o encontro terá de ser longe de casa: Daniel viajará de Curitiba até a divisa de Pernambuco com Bahia a fim de encontrar o grande amor.
Mas não acredite no argumento de Daniel de que foi enganado – a defesa desesperada dele é arma ineficiente. Com a vida dominada pela tecnologia, perdemos a ingenuidade e aprendemos a detectar o falso e o artificial; portanto, ninguém mais se engana com imagens voláteis de qualquer natureza que povoam de modo incessante os nossos dias.
“Pra que mentir tanto assim”, Daniel? Para quê, se você está consciente de que buscou a ilusão em Sara (Pedro Fasanaro) preparado para ouvir: “Se não tá mais à vontade, sai por onde entrei”. Ele não está à vontade; porém, se recusa a sair.
Muritiba se dispôs a falar de amor por conta do ódio instalado no Brasil polarizado politicamente (ódio dos dois lados, a propósito) e que seria um gesto de generosidade da parte dele.
Mas o diretor/roteirista equivoca-se na tentativa de ajuntar antípodas e colocar o mundo da disciplina, da ordem e das palavras imperativas sentado à mesma mesa do universo do caos, do que brincar com a transparência, do obscuro, do escondido nos becos, nas brechas, nas esquinas. Para confundir um pouco mais, ele acredita nessa via como solução para o Brasil contemporâneo nestes difíceis dias em que aumentaram nossos abismos sociais, econômicos e políticos.
Trata-se da tentativa de humanizar a imagem construída e reafirmada na prática do sujeito violento que temos do policial, ao mesmo tempo em que ameniza a imagem do homem travestido de mulher – o pior dos homens (feito “pra apanhar/feito pra cuspir”) e, não por acaso, alvo da violência policial e religiosa.
A policial, ao menos, se explicita; a religiosa (leia-se, evangélicos), sem parecerem violentos, enviam homossexuais para o inferno todos os dias e baseados na Bíblia (portanto, sob suposta anuência de Deus), como se cristãos fossem modelos de virtude. Tamanha violência contradiz a pregação do próprio mestre que seguem, arauto do amor, da paz, da graça e da misericórdia.
Tecnicamente, Deserto Particular tem muitas qualidades. Trilha bonita de Felipe Ayres, edição fluida de Patrícia Saramago, fotografia sóbria de Luis Armando Arteaga, ambientação adequada, condução correta, bom desempenho do elenco. Quanto ao objetivo proposto, apesar das boas intenções, trata-se, apenas, do exercício de utopia da união improvável.
Deserto Particular, representante do Brasil na disputa de uma vaga no Oscar 2022, entra em cartaz nesta quinta-feira, 25/11, nos cinemas
João Nunes é jornalista e crítico de cinema