Por Fábio Gallacci, especial para o Hora Campinas
O microfone pode ser uma arma contra o fascismo? Para José Rodrigues Mao Júnior, de 59 anos, sim. Afinal, esse senhor de suspensórios e fala tranquila roda todo o underground brasileiro travando essa batalha há quatro décadas. No palco ele é apenas Mao, vocalista da banda Garotos Podres, um dos pilares do punk nacional. Nascido em Mauá, região do Grande ABC, berço dos movimentos grevistas de metalúrgicos que desafiaram a ditadura militar nos 1970 e 1980, o grupo sempre defendeu esses mesmos ideais em suas letras.
Inclusive, tem em sua história o fato de a última música a receber o infame carimbo da censura no Brasil ser sua: “Batman” foi proibida dias antes da promulgação da Constituição Cidadã de 1988. Era a ditadura deixando lembranças mesmo em seu adeus após mais de 20 anos.
Agora, com o capitão reformado Jair Bolsonaro na presidência e vozes da extrema-direita saindo das sombras a todo momento, os shows se transformam em uma missão de resistência. Mao não é mais um garoto, mas continua de pé berrando contra quem ameaça a liberdade.
A banda visitou Campinas no mês passado para mais um show lotado. A Garotos Podres também conta com Rinaldi na guitarra, Uel no baixo e Tony Karpa na bateria. Músicos afiados que mantêm o legado de quem já passou por aqueles instrumentos. Entre as clássicas músicas que apenas quem acompanha o punk conhece de trás pra frente, vários empurrões, botinadas, gritos de ordem contra Bolsonaro e homenagens a movimentos populares do passado que deixaram suas marcas na história. Enfim, uma apresentação de gala para punk nenhum colocar defeito.
Além de vocalista, Mao é professor universitário, especialista em temas como Revolução Cubana e Anti-Imperialismo, e por isso acredita que o palco também serve como sala de aula contra ditaduras e opressores. Antes da apresentação no Woodstock Music Bar, que celebrou os 40 anos da banda, o professor e vocalista Mao concedeu uma entrevista ao Hora Campinas. Confira a seguir:
Hora Campinas – A banda Garotos Podres completa 40 anos e, desde o seu início, apresenta letras com forte teor social e político, além de críticas ao sistema. Quatro décadas depois, o discurso precisa continuar o mesmo?
Mao – Eu considero isso uma grande infelicidade. Porque, quando o Garotos Podres iniciou, nós vivíamos o período final da ditadura militar. Nosso primeiro show foi uma participação no festival beneficente ao fundo de greve dos metalúrgicos do ABC paulista, em 1983. Então, nós nascemos dentro dessa cultura de resistência contra a ditadura militar. E o que nós sempre sonhamos era que todo esse contexto tivesse sido superado. Entretanto, hoje, em 2022, nós vivemos sob um governo que não é exatamente uma ditadura, mas não é uma democracia plena e que toda semana faz discurso defendendo um golpe militar no Brasil, toda semana defendendo a ditadura, ou seja, infelizmente o nosso discurso continua atual. Vou ser bem sincero, nós gostaríamos muito de termos sido ultrapassados, mas isso não aconteceu.
Qual o significado disso?
Nós continuamos na luta contra a barbárie e contra o fascismo porque esse governo representa o ódio, a morte e toda semana defende um golpe militar. Recentemente, um dos filhos desse ditador defendeu a tortura de uma jornalista grávida, então com 19 anos, trancada numa cela escura junto com uma jiboia (refere-se à história de Miriam Leitão, da Globo). Quer dizer, nós estamos lidando com pessoas absolutamente monstruosas. Um presidente que defende a tortura, que defende uma guerra civil. Então, nós dos Garotos Podres nos colocamos na defesa da humanidade contra a bestialidade da ditadura, do fascismo, contra a bestialidade do senhor Jair Messias Bolsonaro.
A democracia está fragilizada no Brasil, tomada por ameaças golpistas, fake news pelas redes sociais e a extrema direita ganhando um espaço cada vez maior. Já tivemos 21 anos de lição após o golpe militar de 1964. Falta memória aos brasileiros?
Historicamente, no Brasil, a democracia é um intervalo entre uma e outra ditadura. Quando nós falamos em Jair Messias Bolsonaro, nós não podemos esquecer que pelo menos 30% da população apoia e vota nesse monstro. Então, se o Jair Bolsonaro é um cara autoritário, que defende assassinato, ditadura, que é homofóbico, misógino…nós temos 30% da população que apoiam esse tipo de discurso e proposta política. Eu diria até que o eleitor do Bolsonaro, no geral, nem todos obviamente, mas uma grande parte, é pior que o próprio Bolsonaro. Então, nós estamos numa luta, numa guerra civil ideológica que perpassa todos setores da sociedade brasileira. Nós devemos resistir à barbárie.
Teremos eleições em outubro. Vivemos um ano histórico?
Essas eleições não são eleições comuns. Não será a escolha entre Lula ou Bolsonaro. Será a escolha entre a democracia e a ditadura, entre a civilização e a barbárie, entre a vida e a morte. Nós estamos diante de um facínora, de um marginal, de um bandido que defende a ditadura. Um marginal, um bandido que defende o estabelecimento de uma guerra civil. Nós estamos em uma situação muito parecida com a Espanha antes da sua guerra civil (conflito armado entre 1936 e 1939) quando a direita deu um golpe, iniciou um conflito que matou um milhão de espanhóis durante a guerra e mais 300 mil depois que os fascistas tomaram o poder. Pessoas que foram fuziladas sem julgamento. Então, nós estamos enfrentando a barbárie, os assassinos.
Nós não podemos nos colocar fora desse combate, devemos reunir, aglutinar todos aqueles que defendem a dignidade do ser humano. Que venham para nossas trincheiras combater a barbárie dos assassinos fascistas.
Veja bem, Bolsonaro é apenas um, junto com a sua família de pervertidos, de milicianos, mas também existe uma legião de assassinos que seguem o Bolsonaro. Todo bolsonarista é um inimigo na humanidade. Como combater? Em primeiro lugar, convencendo as pessoas, trazendo todas elas para o nosso lado em defesa da humanidade e contra a barbárie e esse fascista.
Nesse contexto, os shows da banda são “atos de resistência”? Você acha que o seu público consegue captar essa mensagem?
São 40 anos de Garotos Podres. Quatro décadas que nós fazemos da banda uma forma de resistência e um veículo para dar ritmo às nossas ideias. Somos, antes de mais nada, uma forma de intervenção política contra a ditadura, o fascismo e o autoritarismo. Essa é a nossa modesta contribuição para a sociedade brasileira.
Temos medalhões da MPB como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, que há muito tempo são apontados como “símbolos” da cultura perseguida pela ditadura militar. Contudo, os punks brasileiros e suas músicas foram mais radicais e não são exaltados…
São época diferentes. Esse pessoal da MPB, tipo Chico Buarque, pegou a década de 1970, que foi muito mais brava e difícil. Nós dos Garotos Podres pegamos já o final da ditadura que, apesar de continuar existindo, já não era tão violenta a coisa. Mesmo assim, nós sofremos com a censura, tivemos músicas censuradas pela Polícia Federal. A última música censurada no Brasil foi dos Garotos Podres, o nome dela é Batman. A censura existiu no País até o dia 4 de outubro de 1988, um dia antes de promulgar a nova Constituição que abolia essa prática. Então, a gente sofreu. O Brasil é um país autoritário mesmo nos períodos ditos democráticos.
Como professor universitário, você acha que o palco também pode ser uma sala de aula?
Eu acho que sim. O palco, além de uma sala de aula, é principalmente uma tribuna de atuação política. É um espaço para a atividade política.
Vocês voltam agora com material novo? A banda está por aí desde o vinil e agora vivemos o momento do streaming. Isso tem ajudado vocês na divulgação do trabalho?
Agora, em maio, nós vamos lançar uma single, uma música nova junto com um clipe. Hoje mudou muita coisa na produção musical. Agora nós acreditamos que não vale a pena gravar um álbum, aquela coisa de ficar dois anos compondo para gravar dez músicas. É muito mais interessante gravar uma música, lançar, fazer um clipe. Estamos na luta. A digitalização mudou muito a produção musical. Antigamente você gravava um disco com dez músicas, dava aquela trabalheira toda e, depois, só uma ou duas viravam. Hoje, não. Grava uma música, vê que tá legal e já lança. Passa dois, três meses lança outra. É muito mais dinâmica a coisa.
As questões sociais sempre estiveram presentes nas letras Confira:
SUBÚRBIO OPERÁRIO
Nasceu num subúrbio operário
De um país subdesenvolvido
Apenas parte da massa
De uma sociedade falida
Submisso a leis injustas
Que o fazem calar
Manipulam seu pensamento
E o impedem de pensar
Solitário em meio à multidão
Sufocado pela fumaça
Rodeado pelo concreto
Perdido no meio da massa
Apenas caminhando
No compasso de seus passos
Seu grito de ódio
Ecoa pelo espaço
Sem esperança de uma vida melhor
Pois os parasitas sugam o seu suor
Sem esperança de uma vida melhor
Pois os parasitas sugam o seu suor
Sobrevivendo das migalhas
Que caem das mesas
Os donos do papel
Os donos do papel
Nasceu num subúrbio operário
De um país subdesenvolvido
Apenas parte da massa
De uma sociedade falida
Ah, ah, ah
Ah, ah
Sem esperança de uma vida melhor
Pois os parasitas sugam o seu suor
Sem esperança de uma vida melhor
Pois os parasitas sugam o seu suor
SAIBA MAIS:
*Vale lembrar que a discografia da banda Garotos Podres pode ser encontrada em tocadores de streaming como o Spotify. Lá, eles têm 32 mil ouvintes mensais. Eles também estão no Instagram, pelo @garotospodresoficial
** O Woodstock Music Bar fica na Rua Erasmo Braga, 06, Jardim Chapadão, Campinas (agenda pode ser conferida em www.woodstockcampinas.com ou pelo @woodstock_music_bar no Instagram)