Ele era um menino de família humilde que, durante uma excursão escolar no início do ano, ficou encantado com uma descoberta. Ao voltar para casa, tomou uma decisão: a de guardar, até dezembro, o pequeno valor em dinheiro que recebia todo mês da família para retornar ao lugar que visitou e realizar um sonho. Na época de Natal, pediu ao pai de presente uma passagem de ônibus e, junto com ele, seguiu na direção do espaço que o havia encantado. Tratava-se de uma livraria.
“Com o dinheiro que juntou, aquele garoto levou para casa três livros”, conta Patrícia Meira, então atendente, que no ato da venda reconheceu o menino de olhos deslumbrados da excursão escolar e quis saber um pouco mais daquela paixão. A saga, a impactou. “É um caso que aconteceu há cerca de 15 anos e ficou na minha memória.”
Hoje Patrícia, que era vendedora da extinta Livraria Cultura no Shopping Iguatemi, local da descoberta do garoto humilde, espera que a mesma magia se estenda entre as crianças e os visitantes que percorrerem o espaço da Biblioteca Pública Municipal Professor Ernesto Manoel Zink e seus arredores.
No local acontecerá o 1º Criançando!, evento dedicado à celebração da literatura infantil com uma programação que envolverá feiras de livros, contação de histórias, palestras, rodas de conversa, bate-papo e apresentação de espetáculo entre esta quinta-feira (13) e sábado (15).
Especialista em literatura infantil, Patrícia é a idealizadora do projeto junto do poeta, ilustrador e artista plástico, João Proteti, e da bibliotecária Suzi Elias. A programação é aberta ao público.
“Se conseguirmos que ao menos uma criança seja impactada como aquele garoto foi, já cumprimos nossa missão”, diz Patrícia, que classifica o Criançando! como uma “sementinha”. E um dos frutos esperados pelos idealizadores é a quebra de barreiras entre os pequenos e os livros. O mito de que pessoas na faixa etária infantil não gostam de ler é uma delas.
“Eu dei o primeiro livro na mão de muitas crianças que diziam não gostar de ler por causa da obrigatoriedade imposta pelos pais e escolas”, lembra Patrícia. “E foi possível ver uma transformação”, conta. “Existe um pensamento errado que é perpetuado. Quando o livro chega como um elemento lúdico, por exemplo, e vira um amigo, como um pet, uma bola, um carrinho ou uma boneca, não há como a paixão ser barrada. O que precisa é o livro chegar até elas.”
Com essa filosofia, o evento celebrará o livro não apenas como uma forma de educação e cultura, mas também de brincadeira, traduzida no contexto recreativo da programação.
“É um sonho que se realiza e nossa expectativa vai além”, diz ao se referir ao evento como organização presente e projeção futura. “Campinas é uma cidade integrada por universidades e escolas importantes e não tem um evento literário de peso. Nosso sonho é que essa realidade mude e que o evento possa dar sua contribuição”, conta Patrícia.
Nesta primeira edição do Criançando!, a proposta é valorizar artistas locais. As feiras de livros serão integradas por 30 expositores.
“Estamos procurando oferecer espaço aos autores independentes e às editoras da região de Campinas para que essas obras possam chegar até as pessoas”, explica a especialista. As palestras, ou rodas de conversas, acontecerão no salão vermelho. Nesta agenda, uma das atrações é a presença de Raquel Alves, filha caçula do educador e escritor Rubem Alves. Já a apresentação teatral ficará por conta da Trupe Borboletras com o espetáculo “De Sonho e Saudade”.
“Incentivamos miniapresentações espontâneas, contando com a colaboração de todos para entreter a criançada com muitas histórias, contos e diversão. Qualquer pessoa apta para esse tipo de espetáculo é bem-vinda”, convoca a organização.
“O livro salvou minha vida”
Patrícia Meira, de 52 anos, diz que seu envolvimento com os livros começou cedo, quando tinha entre 5 e 6 anos de idade. Na ocasião, ela lembra que as histórias chegaram até ela como uma tábua de salvação. Com uma infância disfuncional marcada pela presença autodestrutiva do pai, que era alcoólatra, Patrícia recorria aos livros para fugir da realidade. “Mergulhava nas histórias, me transportava para outros lugares”, conta.
A mãe de Patrícia era analfabeta, mas cultivava um respeito enorme pelos livros. “Todos os analfabetos são assim”, observa. E foi uma incentivadora da filha.
“Estudei em escolas públicas e, na época, não havia programas de leitura e distribuição de livros como hoje”, lembra. “Então, eu lia materiais aos quais tinha acesso, como aqueles romances que eram vendidos em bancas de jornais e nem eram indicados para a minha idade”, conta.
Ao frequentar a biblioteca da escola, passou a ter contato com os grandes clássicos. “Com 10 anos, já tinha lido tudo de Machado de Assis”, afirma. “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, e “Capitães de Areia”, de Jorge Amado, são duas obras que ela diz ler todos os anos desde a adolescência.
“Meu grande herói na infância era o Pedro Bala e seus capitães de areia, que lutavam contra um sistema extremamente opressor.”
Curiosamente, a vida acadêmica de Patrícia tomou um rumo sem ligação com a literatura. “Me formei em gastronomia e trabalhei como cozinheira”, relata ela que, no entanto, foi redirecionada ao universo dos livros sem nenhum planejamento prévio. “Um dia entrei na Livraria Cultura do Iguatemi e, por impulso, deixei um currículo. Acabaram me chamando.”
“Livreira” há 20 anos com especialização em literatura infantil, Patrícia tem um sebo virtual no Instagram (@sebocapitulo2). Seu plano é, até o final do ano, transformar o sebo em um espaço físico.