Um dos grandes dilemas e dificuldades para os cursos da área de saúde, particularmente, a medicina, é fazer caber os conteúdos programáticos nos seis anos regulares da graduação. Possivelmente, não existe outra área do conhecimento onde haja maior progresso e incorporações de conhecimentos por unidade de tempo do que a área da saúde. Para se ter uma pálida ideia, são cerca de dois milhões de artigos científicos publicados por ano, apenas nas ciências da vida. Não há qualquer possibilidade de que um profissional possa acompanhar e muito menos incorporar estes conhecimentos em suas práticas diárias. Por outro lado, o curso médico tem seis anos de duração há mais de 100 anos.
A primeira liga acadêmica foi criada em 1918 (isto mesmo, há mais de 100 anos) na Universidade de São Paulo como liga de combate à sífilis, doença que nos assola até os dias de hoje, mesmo com a incorporação da penicilina, antibiótico que cura praticamente 100% dos casos adequadamente tratados e seguidos clinicamente.
Todos podem entender com facilidade a enorme dificuldade de se incluir novos cursos e disciplinas dentro do mesmo tempo de graduação com este enorme progresso científico, tecnológico e de inovação. Um aspecto fundamental aos cursos da área da saúde, é que eles devem formar os jovens com sólidos conhecimentos de fisiopatologia e de propedêutica. É a fase da “arte médica” onde o aluno deve aprender a coletar dados, sinais e sintomas, e integra-los na busca dos possíveis diagnósticos sindrômicos ou etiológicos. Ficará para as residências em saúde a consolidação do aprendizado dos cursos de graduação, a aquisição de habilidades e de formação técnica e ética.
Tendo em vista a enorme desproporção entre “o conteúdo e o continente”, isto é, entre o volume de informações e o tempo dos cursos de graduação é que se ampliaram e se organizaram as “Ligas Acadêmicas”.
Ao final da década de 1990, as discussões em Educação Médica passaram a considerar a possibilidade de os estudantes incluírem parte de suas grades curriculares nas “Ligas” (1). Como professor universitário tenho feito várias apresentações e discussões com ligas de hematologia e oncologia, muitas de outras Universidades onde não sou professor, apenas convidado para discutir com os alunos temas de seus interesses. Em publicação feita pela Associação Brasileira de Ligas Acadêmicas em Medicina (ABLAM) em 2016 ficou estabelecido que “As ligas Acadêmicas são entidades constituídas fundamentalmente por estudantes, em que se busca aprofundar temas em uma determinada área da medicina. Para tanto, as atividades das Ligas Acadêmicas se orientam segundo os princípios do tripé universitário de Ensino, Pesquisa e Extensão”.
A ABLAM foi fundada em 2005 durante o 8º Congresso de Clínica Médica e conta com o apoio de várias entidades médicas nacionais como a Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH), filiada a Associação Médica Brasileira (AMB), da qual sou membro ativo e grande entusiasta desta modalidade de ensino complementar.
A ABHH por meio do programa Sangue Jovem, disponibiliza aos estudantes de medicina de todo o Brasil, acesso aos conteúdos técnicos e científicos produzidos pela entidade, através de benefícios exclusivos como acesso à materiais educacionais digitais, grupo nas redes sociais para discussão de casos, orientações, premiações, além de inscrições gratuitas para todos os eventos que a Associação realiza.
Importante ressaltar que as ligas são entidades estudantis autônomas permitindo, entretanto, em seu estatuto, que médicos residentes, profissionais médicos, outros profissionais de saúde e professores possam compor, minoritariamente, o seu corpo diretivo. Dentre as mais importantes funções das ligas acadêmicas estão o fomento à difusão do conhecimento entre as ligas dos temas de interesse que poderão compor os eventos interligas; incentivar o relacionamento, a integração e mobilidade entre elas; incentivar a criação de novas ligas com temas novos e contemporâneos; elevar sempre os padrões de qualidade nas informações e assuntos discutidos e valorizar o papel destas ligas junto à sociedade e entidades universitárias e de especialidades.
Neste momento, eu acrescentaria a colocação das ligas em seus papéis sociais de apoio ao enfrentamento das crises sanitárias como a que ocorreu com a SarsCov2 ou de ações supervisionadas junto a sociedade (como a doação de sangue, por exemplo) e junto ao SUS.
A ideia de incluir os estudantes das profissões de saúde precocemente não só como agente em formação, mas também como agente modificador da sociedade é fascinante. Estes estudantes serão nossos profissionais, gestores e dirigentes do futuro. Quanto mais cedo se envolverem em tudo o que a sociedade pode oferecer em termos de aprendizado e experiências, mais preparados estarão para os desafios vindouros.
Os conhecimentos e as experiências não ocupam espaço, quanto mais melhor. O conhecimento sólido nesta fase da vida, será inesquecível e imprescindível. As experiências serão os alicerces para a construção de carreiras brilhantes e compromissadas com a sociedade. Nossos alunos têm a exata dimensão dos enormes investimentos que a sociedade e as famílias fazem neles e sabem que poderão retribuir com excelentes serviços e ações públicas.
Profissionais de saúde devem gostar de cuidar das pessoas e cuidarão melhor se forem bem preparados como profissionais e como pessoas probas, éticas e honestas.
As ligas são ferramentas importantes para alcançarmos estes objetos. Além disto, permitem que os estudantes criem instâncias de gestão e administração que serão úteis em sua prática profissional com o compartilhamento de conhecimento e práticas atuais e constantemente atualizadas. Todos nós sabemos da força transformadora dos estudantes e as ligas ajudam nesta aproximação, organização e melhor preparação para o futuro.
Prof. Carmino Antonio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020.
Dra. Aline Pimenta Ache é gestora da ABHH e especialista em administração e marketing.
(1)- ABLAM: Fundação e Princípios. Associação Brasileira de Ligas Acadêmicas de Medicina, 2016, 1-3.