Além da dor da perda, parentes das vítimas da Covid têm que encarar o luto de uma forma ainda mais dolorosa: sem despedida. Tudo muito silencioso e sufocante. Velórios e sepultamentos sempre foram comuns no processo de enfrentamento do luto. Novos rituais vão surgir depois do estrago que o coronavírus está fazendo? Tudo ainda é muito novo e até os especialistas em saúde mental precisam de um tempo para assimilar a questão.
Todos conhecem alguém próximo que já passou por isso. Fui informada há alguns dias da morte de um senhor que foi enterrado sem a presença da mulher e dos dois filhos, uma vez que a família inteira estava com Covid. Casos assim acontecem com frequência, e muitos amigos dessas famílias também não se despedem dos mortos pelo fato de estarem isolados, com medo de contrair o vírus, e até por serem orientados a se comportar dessa forma.
A psicóloga Giovana Zaparoli de Oliveira, graduada pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, é especialista em Psicologia Hospitalar pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e em Psico-Oncologia pela Sociedade Brasileira de Psico-Oncologia. Seu currículo extenso inclui outra especialidade: Teoria, Pesquisa e Intervenção em Luto, pelo Instituto 4 estações, de São Paulo.
Giovana também é co-fundadora do Instituto Sentir, de Campinas, espaço que acolhe pacientes e familiares, de todas as idades, em tratamento oncológico, cuidados paliativos, terapia da dor e terapia do luto. O Sentir reúne uma equipe de psicólogas que são especialistas em clínica do luto. No local, são realizados atendimentos particulares, para quem tem condições de pagar, e também há uma clínica social para os que não têm a mesma disponibilidade financeira. O intuito é poder cuidar do maior número de pessoas, com qualidade e eficiência.
Conversei com Giovana sobre esse tema que ficou ainda mais difícil de encarar de um ano pra cá, quando a Covid mudou tudo, especialmente a forma de dizermos adeus aos entes queridos. A profissional ajuda o paciente a compreender as causas do sofrimento e encontrar formas de enfrentá-lo. Atualmente, atende crianças, adolescentes, adultos e idosos com a abordagem teórica Gestalt-Terapia. Confira o que a psicóloga tem vivenciado nesse período.
Hora Campinas- Esse luto que a pandemia nos impôs já é tema de pesquisas no Brasil?
Giovana Zaparoli de Oliveira– Muito tem se pesquisado, principalmente frente ao burnout, síndrome causada pelo esgotamento emocional provocado pelo excesso de trabalho, e também o luto dos profissionais de saúde e perdas de famílias inteiras.
Como é para a família perder um ente querido sem poder se despedir dele?
Os rituais de despedida são de extrema importância para todo o processo do luto. Hoje, compreendemos que poder ter um velório, por exemplo, pode colaborar para que as pessoas tenham lutos menos complicados, que possam passar por essa fase que por si só já é tão difícil da maneira menos sofrida. Com a indisponibilidade desses rituais, que são habituais, por conta de contaminações, é possível pensarmos em estratégias para que a despedida não exponha ninguém a riscos.
Essa alteração nos formatos de velórios e sepultamentos causa muitos danos psicológicos nas famílias?
Infelizmente, sim. Os estudos comprovam que a falta de rituais pode proporcionar processos de elaboração de luto mais complexos, inclusive isso é considerado como um fator de risco para o luto complicado, quando o sofrimento aparece de forma mais intensa e pode, inclusive, impossibilitar que a pessoa siga com sua rotina.
Antes da pandemia, as famílias se sentiam acolhidas com abraços, frases, missas, homenagens, mas agora tudo ficou proibido. De que forma podemos manifestar nossas condolências?
Não existe uma forma certa para isso, cada pessoa e família, dentro das suas possibilidades, podem fazer da maneira que se sintam bem. Famílias religiosas podem fazer uma oração, acender uma vela em homenagem à pessoa amada. Outras podem escrever cartas a quem se foi e soltar junto a balões, e esse processo é inclusive muito interessante quando há crianças na família, pois elas podem participar e expressar seus sentimentos. O mais importante de tudo é que, cada família e pessoa, dentro da sua cultura, da sua condição emocional, possa expressar suas condolências.
Nunca vivemos lutos tão traumáticos como os da Covid-19. Como deve ser dado apoio aos enlutados?
A morte, apesar de ser a única certeza da vida, não é trabalhada na nossa sociedade. Não somos educados e preparados para isso, então, inevitavelmente, quando somos expostos a tamanha quantidade de pessoas sendo contaminadas e evoluindo para o óbito, ficamos muito indefesos. Ter suporte de equipes especialistas em luto, principalmente para aqueles que não possuem possibilidades de pagar um processo psicoterapêutico, seria um sonho, mas quando falamos de educação para a morte, cada um de nós pode colaborar para uma sociedade mais saudável emocionalmente.
E como se comportam as crianças?
Elas costumam ter uma flexibilidade emocional maior, até mesmo por estarem em fase de desenvolvimento, e se desde cedo permitirmos que elas compreendam, tirem suas dúvidas, com certeza teremos uma geração muito mais preparada. Claramente isso não é uma tarefa fácil, afinal, são anos convivendo com esse tabu, mas falar da forma mais simples possível, demonstrar que dói demais nos adultos também e, principalmente, deixar claro que elas não foram abandonadas, já é um grande começo.
Velório e sepultamento sempre foram comuns no processo de recuperação do luto. Acha que seria conveniente criar outros rituais para ajudar os enlutados? Homenagens póstumas, por exemplo? O que mais?
Sim, é sempre importante arranjar uma forma para se despedir, seja sozinho ou em grupo. Para o luto, o fundamental é expressar seus sentimentos. Chorar quando sentir vontade, se permitir pedir ajuda se for necessário, e, quando for possível, se reunir com as pessoas amadas para homenagear quem morreu. Só não podemos fingir que nada aconteceu e continuarmos fechados, colocando esse furacão de sentimentos e emoções para debaixo do tapete. O luto existe, é uma dor real. Há, inclusive, sintomas físicos, e precisamos falar.
O fato de não poder estar ao lado do ente querido em seus últimos momentos de vida gera sentimentos de culpa entre as pessoas mais próximas. Tem constatado isso nos últimos meses?
Sim, infelizmente. A morte por Covid é muito cruel, e uma das razões é não poder estar junto do doente e nem poder cuidar dele nesse período de hospitalização. As equipes dos hospitais têm tido bastante sensibilidade nesse momento, possibilitando a maior proximidade das famílias com os pacientes internados, o que costuma ajudar. Porém, ainda assim, é difícil fazer uma mãe, por exemplo, se satisfazer com esse cuidado.
As pessoas costumam se afastar nesse momento até por segurança, já que outros familiares do morto podem estar contaminados. O que fazer nessas circunstâncias?
A distância física é necessária, infelizmente estamos falando de um vírus muito perigoso, já que podemos não ter sintomas e ao mesmo tempo não sobreviver a ele. Porém, é possível ter outras formas de cuidado, ainda que não presencialmente. Colaborar com questões burocráticas nesse momento pode ajudar, ou seja, fazer uma comida e levar para a família enlutada, fazer ligações, mandar mensagem, perguntar se estão precisando de algo. É claro que muitos preferem ficar mais restritos nesse processo do luto imediato, mas às vezes se sentem incapazes de realizar atividades muitos simples, como ir ao mercado, lavar roupa ou levar os filhos para a escola. O importante é estar junto, e fazer o que está ao alcance.
Quanto tempo costuma durar o luto? Quando é muito prolongado, o que fazer?
Essa é uma questão bastante delicada, pois até muito pouco tempo atrás reforçavam que o luto deve durar, em média, um ano, e quando ultrapassava esse tempo, era pontuado como algo patológico. Felizmente, isso não é visto mais da mesma forma pelos profissionais, e atualmente estudamos se o luto de fato tem um fim. O luto é processo de altos e baixos, teremos momentos em que ficaremos voltados para a perda e todo o sofrimento que ela trás e momentos em que vamos tentar retomar nossa rotina. Esse é o processo saudável, estar entre esses dois polos, sem fixar em um deles. Pensando nisso, fingir que nada aconteceu, ou sentir a perda todos os dias da mesma forma que no momento que ficou sabendo dessa morte é o que mais preocupa, já que demonstram maior risco para lutos complicados.
De que maneira você costuma pensar no luto?
De forma geral, penso no luto como um punhado de glitter, se você jogar ele pra cima, pode limpar a casa quantas vezes quiser, mas de vez em quando sempre vai achar um brilhozinho perdido. Então, com o luto, você pode seguir sua vida normalmente, mas de vez em quando esse aperto, a falta e a saudade, tudo vai apertar.
Sofrer sozinho é pior?
Depende, cada pessoa é única, bem como a relação criada entre as pessoas. Para algumas, passar por esse processo sozinho pode ser agonizante, por necessitar de suporte, apoio e cuidado. Porém, para outros pode ser fundamental, sendo inclusive um espaço para poder expressar tudo o que sente.
De um ano pra cá, como tem sido sua rotina profissional? Já teve dias que desabou e precisou de ajuda?
Desde o início da pandemia muita coisa mudou em minha rotina. Antes, os atendimentos eram totalmente presenciais, muitos dentro de hospitais, e com o passar do tempo, além do grande crescimento de demandas, a maior parte passou a ser on-line. Isso por um lado é muito positivo, já que dá para alcançar muito mais pessoas, em nível nacional, mas também é bastante cansativo, por ser em casa e pela tela de um computador. Assim como todas as pessoas, tive alguns altos e baixos, é inevitável sofrer, ficar com medo, se angustiar. Quando estava trabalhando ativamente dentro dos hospitais, tive muito medo de transmitir Covid-19 para a minha família.
Alguma coisa ficou mais clara nesse pra você nesse período de pandemia?
Sim, a importância da psicoterapia. Já fazia antes, mas se tornou indispensável nesse momento, bem como a necessidade de autocuidado, de forma geral, consultas médicas de rotina, atividades físicas, prestar atenção nos limites e validá-los, entre outros. Sempre precisamos ter em quem nos apoiar.
Teve contato com muitos casos tristes?
Tive, e de certa forma sempre dói um pouquinho quando escutamos as histórias dos pacientes, a identificação sempre está presente. É a mãe de alguém, o filho de alguém, o melhor amigo, ou vários membros de uma mesma família.
Janete Trevisani é jornalista – [email protected]