Quando Agnieszka Holland narra a história na qual predominam o uso da força e da ideologia do tempo em que a antiga Tchecoslováquia vivia sob domínio soviético, os cenários de O Charlatão (Charlatan, República Checa/ Irlanda/ Eslováquia/ Polônia, 2020, drama, 118 min.) são lugares, em geral, fechados e de cores em tons quase sempre escuros do acinzentado ou do ocre. Ou seja, um mundo encoberto e sombrio.
Ao remeter ao passado do protagonista Mikolášek adulto (Ivan Trojan; Josef Trojan interpreta o personagem jovem) descobrindo a vocação para a cura de doenças ou nos idílicos passeios com o namorado Frantisek Palko (Juraj Loj) os espaços se tornam abertos e a tela se enche de cores – signos de esperança.
Os dois tempos em contraponto são, portanto, determinantes na narrativa da diretora polonesa. Não importa a ideologia nem o país, tampouco as motivações: ditadura ou qualquer regime que flerte com algum tipo de ausência de liberdade é inadmissível.
O garoto Mikolášek, que tem o poder de prever o futuro, desenvolveu o dom da cura a partir do estudo das plantas e o aperfeiçoou com ajuda de uma curandeira. Ele curou muitos pobres que não tinham acesso aos cuidados médicos do país e até Antonin Zápotocký, o presidente da Tchecoslováquia entre 1953 e 1957.
Assim agem governos de exceção: se o sujeito pode curar o ditador, tudo bem, ele está prestando serviços à nação. Se, no entanto, começa a chamar excessiva atenção para si e a conhecer meandros do poder – como Mikolášek conhecia, ao ponto de se sentir protegido pelo regime – alguma providência precisa ser tomada.
Pior para o rapaz de dons especiais se ele não se comporta de acordo com os princípios morais dos detentores do poder.
Pois, junto com o dom da cura, Mikolášek desenvolveu o estranho (para os ditadores) hábito de, sexualmente, apreciar homens, em vez de mulheres, como determina o padrão (ainda segundo os ditadores). Mas os tempos mudaram. O presidente está morto, Mikolášek perde a influência que julgava ter no governo, passa a ser vigiado 24 horas por dia e, de repente, as truculentas autoridades comprovam os tais “estranhos” hábitos e ele passa a ser vítima de perseguição implacável.
Em uma das buscas, um “gentil” policial remete ao ditador russo, Josef Stalin (que havia morrido em 1953), como alguém capaz de colocar o curandeiro “nos eixos”.
Enquanto trava a luta inglória contra donos da verdade de um poder imposto pela força enfrenta outro opositor maior que ideológico: ele mesmo, corroído pela culpa que espia com terríveis torturas.
Incapaz de vencer o amor socialmente proibido pelas autoridades e, que, ele próprio renega, Mikolášek se entrega ao prazer e, para isso, usa armas nem um pouco generosas. O sujeito iluminado por Deus para atenuar a dor do outro também sofre dores e comete pecados – nada mais humano.
Confira o trailer no link https://youtu.be/UJ0NUHjeiCc
Obviamente, ele não será indiciado por gostar de rapazes. Ditadores não se sujam por tão pouco. Ele será preso e irá a julgamento depois de ser encontrada estricnina nos corpos de dois homens que ele havia tratado. Uma mentira que encobre outra mentira e se estabelece como verdade em meio ao ambiente corrupto.
As atrocidades cometidas por governos dessa natureza, tanto da esquerda quanto da direita, são inumeráveis.
Servem-nos hoje para, uma vez conhecida a história, não repeti-la. Serve-nos como documentos comprobatórios de que, com todos os defeitos da democracia, ainda não inventaram nada melhor que ela.
Inacreditável que, de tempos em tempos, alguém ouse ressuscitar regimes de exceção. Ou não sabem o que eles significam ou estão, pacientemente, preparando o ninho no qual insuspeitos ovos gestam sinistras serpentes.
João Nunes é jornalista e crítico de cinema
Disponível no NOW, Looke, Vivo Play, Google Play, Microsoft e iTunes. Não recomendável para menores de 14 anos.