Dezembro de 2021. Dois anos desde que a mutação do coronavírus tornou-se a Covid-19, retrovírus altamente contagioso que já levou a vida de mais de 5,25 milhões de pessoas no mundo todo. Depois de a variante Delta ter sido identificada na Índia, em outubro do ano passado, a “terceira onda” de contaminação fez a discussão sobre a urgência da vacinação tomar proporções globais e vínhamos, pouco a pouco, apesar do negacionismo e da cruel sabotagem de alguns, criando expectativas de que, com a chegada de 2022, a fase aguda dessa devastadora pandemia poderia finalmente estar acabando.
Há alguns dias, noticiada na África do Sul, a nova cepa batizada Ômicron, possivelmente originada na Holanda, ameaça fazer retroceder todos os esforços e sacrifícios de dois anos de confinamento, incertezas, reviravoltas, renúncias e um grave esgotamento da esperança pelo fim da pandemia, já que, a cada nova mutação do vírus, a imunização trazida pelas vacinas pode tornar-se menor ou insuficiente para evitar sintomas graves e óbitos. Em outras palavras: se não houver um esforço coletivo para uma campanha de vacinação que alcance as pessoas no mundo todo, simultaneamente, o risco de novas variantes resistentes às vacinas disponíveis surgirem, à medida que pessoas não imunizadas funcionam como fábricas de reprodução do vírus, continuará trazendo severos transtornos às nossas vidas.
Na pressa de lideranças políticas por popularidade e do empresariado por lucros sobre as muitas crises que temos atravessado, o vírus continua se espalhando, revelando que a pandemia é, também, uma sindemia, situação em que as desigualdades socioeconômicas e vulnerabilidades de grupos marginalizados potencializam os estragos causados por doenças que poderiam (e deveriam!) ser reduzidos através de políticas públicas de acesso à saúde, saneamento básico, habitação, alimentação, proteção social e biossegurança.
Enquanto houver divisão entre países e povos ricos e pobres, centros e periferias, condomínios de luxo e favelas, senhores e servos, vírus como o da Covid-19 continuarão a se espalhar como sintoma dos desequilíbrios causados pela forma predatória e destrutiva como tem sido conduzido o “desenvolvimento” do planeta Terra.
De um lado, milhões de pessoas agonizam esperando pela vacinação, desempregadas, famintas, sem teto; do outro, insumos e medicamentos estragam em depósitos nos países onde pessoas com a geladeira cheia e acesso a informação se recusam a participar da imunização coletiva por preferirem uma versão fantasiosa, individualista e egocêntrica sobre realidades baseadas na pós-verdade – no achismo, em crenças e desejos avessos a evidências científicas.
Para além da ignorância seletiva transformada pela visão individualista num tipo supremo (e bizarro) de “liberdade”, as instituições hegemônicas reafirmam seu poder sobre nosso dia-a-dia: o Estado e grandes empresas (do setor farmacêutico-hospitalar, das telecomunicações, de eletrônicos, das finanças, da segurança) violam nossa privacidade, mantendo-nos sob vigilância em protocolos de controle e manutenção da ordem que privilegia pequenos grupos explorando os demais.
Desesperadas, esgotadas e amedrontadas, muitas pessoas acabam por fugir para realidades alternativas.
Do uso de drogas entorpecentes à imersão no mundo virtual das séries, jogos e redes sociais, formas de alienação revelam como o individualismo é barreira terminal a uma resposta coletiva e solidária a problemas que a humanidade enfrenta.
Nesse cenário desolador, como ficam os espaços criativos, produtores de relações de afeto, de valorização das culturas, dos saberes, das artes, da felicidade, da compaixão? Em meio a fome, desabrigo, violência e morte, a simples sobrevivência se torna recompensa à obediência, à resignação e à submissão diante dos que controlam a máquina pública, o dinheiro, os meios de comunicação e a indústria da fé.
Tomar vacina. Usar máscara em ambientes coletivos. Lavar as mãos. Evitar aglomerações. Medidas imprescindíveis, mas que só fazem sentido se o acesso à saúde for universalizado, a fome for erradicada, a exploração socioeconômica for abolida, a dignidade da vida humana for priorizada, a educação crítico-reflexiva for valorizada, a ciência for ouvida e respeitada.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e artes.