Página em branco. Olho a tela do computador e procuro uma folha de papel enrolada em uma máquina Royal, inglesa, de teclas madrepérolas.
Quando entrei no Diário do Povo, em 1970, alguém da editoria me levou à minha mesa e me apresentou à ferramenta. E assim fiquei apaixonado por ela. Nem tanto pelas palavras que ela iria obedecer pelo seu ofício mecânico: eu batia e ela reproduzia. E o papel saia de lá como se fosse o grande inocente de nossas verdades, tudo carbonado em quatro vias. Em suma, a verdade virando mentira em cada folha.
Não se deve confiar em uma palavra escrita por quem quer que seja. Duvide sempre. E leve a sua vida em dúvidas. E não procure respostas. O tempo sempre nos aconselha a respeitar as coisas como elas são.
Pedra é pedra. Água é água. Mas o que se acha escrito não merece crédito final. O homem mente muito mais do que o Diabo. E o Diabo gosta dessa brincadeira.
Tenho um Diabo agora mesmo atrás das costas. E ele fica provocando palavras que não desejo e o espano com a mão esquerda por cima dos ombros, um pó qualquer, uma coisa sem importância.
O danado chegou em casa bem antes do café matinal. O meu passarinho estava cantando – ele sempre canta quando escuta os meus passos matinais – e preparei o seu café matinal: alpiste, vitamina e um bom naco de jiló.
Ao colocar a gaiola para pegar os primeiros raios da manhã, vi um filhotinho de rolinha encolhidinho num canto da varanda. Acho que ele tentou voar de algum apartamento acima e aterrissou no meu.
Água, papinha de fubá, e o bichinho morreu nas mãos serenas e quentes da minha companheira. E assim é a santa e bela Natureza: às vezes cruel e malvada.
Não digo mais nada a quem quer seja. A vida também é um papel carbono que apenas repete o que somos. E sempre foi assim. Repetimos gestos de nossos pais, de nossos irmãos, ou mesmo de um primo distante. E repetimos sempre as mesmas orações, os mesmos pais nossos, as aves marias, os creio em deus padre, as salves rainhas. E os fiéis cantam seus hinos, gospels, dançam e cantam para que a eternidade os ouça. E eu apenas seguro o filhote de rolinha nas mãos e sinto suas penas macias, ainda quentes, que jamais irão conhecer a lei da gravidade e os ventos da cidade.
E assim deixo a tarde se entristecer por mais um filho que não soube entender o tempo de se aventurar por aí, galho em galho, telhados e quintais.
O tempo é um papel carbono que vive repetindo a vida das coisas, quaisquer coisas, da vida de um elefante a uma vida de filhote de rolinha. Mesmo os homens também têm suas vidas carbonadas, sempre repetidas, sempre o mais do mesmo, a mesma mesmice, os mesmos erros, os mesmos pecados, os mesmos desejos idiotas, um carro legal, um emprego melhor, grana no bolso, justiça social, governo de princípios republicanos, e, ao mesmo tempo, pagando propina para policiais corruptos, deputados corruptos, agentes públicos corruptos, e sempre com a desculpa que os nossos erros morais são provocados pela bandidagem imoral.
O passarinho morto na minha mão é um exemplo da Natureza maldita, da sua amoralidade. Somos filhos de uma Natureza que não reconhece seus fracassos. E eis aí as queimadas amazônicas, gregas, italianas, os vendilhões políticos de todas as etnias, e o aleijado que tudo o que tem é uma bengala de cabo de vassoura e uma vergonha de estender a outra mão para receber uma moeda de dez centavos.
E o passarinho se faz uma nuvem e segue pelo azul do céu. E assim aguardo deixar de ser um papel carbono da vida e buscar um viver original. É isso.
Zeza Amaral é jornalista, escritor e músico