Chamado de Antropoceno por cientistas políticos ou de “Quarta Revolução Industrial” por economistas, não há dúvidas de que o momento e as condições sócio-históricas atuais possuem características inéditas, sobretudo na relação tempo-espaço profundamente transformada pelo desenvolvimento e ampliação de ferramentas e estruturas de acesso à internet, incluindo dispositivos remotos de comunicação, smartphones, drones e artefatos controlados via satélite.
Por um lado, se tornou possível conectar pontos geograficamente distantes e áreas até então isoladas, facilitando conhecer e valorizar peculiaridades da complexa teia civilizatória humana, bem como reagir a violências antes invisibilizadas pelos meios tradicionais de comunicação e organizar resistências locais, movimentos horizontais e democráticos protagonizados por grupos marginalizados contra entes hegemônicos, assim como conhecer praticamente toda a superfície terrestre e desenvolver estratégias de preservação ambiental, por exemplo, ou colocar ao alcance de pessoas do mundo todo o acesso virtual a pontos turísticos, monumentos históricos e paisagens variadas pelo globo.
Por outro lado, todavia, também ganhou espaço o discurso segregacionista, de ódio, supremacista, reacionário e intolerante, inclusive na voz de lideranças nacionais, característico de séculos passados, resgatando valores retrógrados em que se embasaram a escravidão de povos africanos, o extermínio de civilizações consideradas “inferiores”, o holocausto nazista, os genocídios durante ditaduras militares, e que ameaçam trazer à realidade os pesadelos da ficção científica sobre um mundo controlado por máquinas que, cruelmente, fazem os seres humanos reféns do medo e do sofrimento.
A maior diferença, talvez, seja que no epicentro dessa distopia cada vez mais real não estão máquinas perversas ou uma inteligência artificial sádica e vingativa, mas o próprio ser humano, encorajado pela covardia que ganha forças com a virtualização desumanizadora do mundo real – seja através do anonimato que as redes sociais lhe conferem, pela legitimidade que obtém através da disseminação de fake news, pela massificação e manipulação de dados promovida pelo uso de robôs (os bots) e algoritmos, seja pela confusão estabelecida entre limites cada vez mais sutis entre a hiper-realidade nos jogos e simulações virtuais, principalmente as que banalizam a violência, e o mundo real, confinado entre muros enormes com câmeras, cercas elétricas e janelas blindadas, visto das telas nas palmas das mãos.
O fortalecimento do egocentrismo entre as pessoas parece fatal.
As relações sociais envolvendo confiança, lealdade, amizade, cooperação e solidariedade são associadas à fraqueza, enquanto ganham força, como virtudes deformadas, a esperteza baseada na mentira, a traição, a competição, a manipulação e a exploração do outro, reduzindo-o a um objeto a ser consumido, quando novidade, e, depois, descartado e substituído.
Tal como num jogo ou numa produção hollywoodiana, as pessoas passam a ser vistas como figurantes, peças inertes numa trama conspiracionista, infantilmente maniqueísta, onde todos são inimigos a serem combatidos, com muitas armas e violência, de preferência, tudo isso transmitido ao vivo a espectadores igualmente covardes, ávidos pelo espetáculo que promete romper o vazio existencial que carregam dentro de si, reflexo de um mundo onde imperam o consumismo, o imediatismo e o individualismo.
As tecnologias, como produtos da inteligência e criatividade humanas, dependem da forma como são utilizadas, é verdade. Com o advento do mundo conectado em rede, guarnecido por impressoras 3D e uso de drones e aeronaves não tripuladas, as possibilidades de aplicação das tecnologias do século XXI vão desde a exploração do espaço sideral e o fornecimento de medicamentos, alimentos, roupas e livros a regiões marcadas pela exploração social e pela pobreza até a fabricação de armas de fogo caseiras e o extermínio repentino de pessoas usando máquinas de guerra controladas a centenas de quilômetros de distância.
Imprescindível se torna retomar os diálogos olhos nos olhos, as reflexões acerca do valor da vida – a própria e a do outro, sobre a importância de proteger a liberdade e os direitos humanos, de praticar a solidariedade, a empatia e a igualdade.
De outra forma, a realidade será cada vez mais parecida com as simulações que banalizam a vida e fazem proliferar a violência e a crueldade, com a diferença de que não se pode desligar o videogame, reiniciar o jogo ou voltar a um checkpoint quando uma vida real é destruída.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.