“Se a vida é a arte dos encontros, a cidade é o cenário desses encontros!”
(adaptado de Vinicius de Morais e Jaime Lerner)
Uma cidade saudável facilita os encontros das pessoas. Garante trocas de saberes que alimentam a criatividade e dinamizam as atividades sociais e econômicas dos que nela vivem. Viabiliza encontros que se traduzem em momentos de convivência no trabalho, nos locais de ensino e de lazer, através de meios de transporte acessíveis a todos.
Neste texto trato da descontrolada expansão das áreas urbanas, resultando em baixa densidade populacional, aumento da dependência do transporte individual, segregação espacial e perda de áreas naturais e terras agrícolas.
Este fenômeno, conhecido como espalhamento urbano (“urban sprawl”), é complexo, com várias causas subjacentes e consequências para o meio ambiente, a economia e a sociedade. Campinas é exemplo perverso deste processo pois expandiu suas fronteiras sobre áreas agrícolas e manteve áreas vazias imensas dentro do seu perímetro urbano, como tratamos em “Mobilidade nas Cidades Inteligentes” Hora Campinas-22/03/2024.
Os motivos deste espalhamento urbano são conhecidos desde a emigração rural acelerada após os anos 1960 aliada à expansão industrial induzida pela economia do automóvel. Movimentos conexos que geraram expansões urbanas em boa medida sem planejamento, ao sabor das oportunidades de negócios, especulativos ou não, e de ocupações irregulares.
O mais paradoxal é que se já não bastasse esta urbanização descontrolada, a que ocorreu de forma ordenada reforçou o espalhamento urbano. Como?
Sob a guarida do urbanismo funcional, as políticas de zonamento segregavam os diversos usos do solo segundo funções: residencial, comercial, industrial ou serviços. A falta de integração destas atividades favoreceu o espalhamento territorial. Por exemplo, nos loteamentos residenciais eram proibidas as edificações que não fossem moradias. Nada de padarias, mercadinhos, escolas, academias, pequenos comércios, bancos, restaurantes ou escritórios nestes bairros dormitórios. Nada de emprego local. Ir ao trabalho exigia longos deslocamentos.
Para estudar, fazer compras ou passear, idem. Durante a maior parte do dia, nos bairros, nada além de casas vazias e cachorros latindo.
A então nascente indústria do automóvel nadou de braçadas neste cenário de espalhamento urbano. Não só o fortalecia como prometia o melhor dos mundos. “O automóvel integrará os espaços urbanos.” “Os espaços dos encontros estarão ao alcance de todos.” Utopia sempre realimentada por vultosos investimentos em avenidas, viadutos, elevados ou túneis além de novas autoestradas que nos levariam aos céus em poucas horas.
Assim, segregados, nasceram muitos bairros com moradores desprovidos de quase tudo.
De forma planejada ou espontânea, em muitas cidades inicia-se então uma evolução lenta e silenciosa para a cidade invisível que temos em nossos corações e mentes: a cidade dos encontros, das pessoas em suas ruas e calçadas, em seus empregos ou escolas, em suas áreas de compras ou de lazer. Pequenos negócios surgem nas garagens das casas, de serviços a pequenas quitandas e brechós. Praças são ocupadas por feiras de artesanato, áreas de alimentação (artesanato gastronômico, oras!), espaços musicais e parquinhos infantis. Espaços de encontros dos sábados e domingos cada vez mais presentes nos demais dias da semana.
Observando esta tendência, grandes empresas correm para ocupar estes espaços descentralizados, neles abrindo minimercados, mini farmácias e franquias, em sistemas de autoatendimento ou não, implantados em bairros, comunidades e condomínios. A digitalização abrindo caminhos para a escalabilidade de atividades econômicas descentralizadas conforme discutimos em “A Revolução Digital Redefinindo a Mobilidade” Hora Campinas – 05/04/2024.
Que os novos planos diretores se adaptem a essa retomada das cidades. Que os gestores públicos ou privados e os legisladores se adaptem e avancem com propostas e regras inovadoras. Que não venham com ideias importadas sem nexo à nossa realidade.
Uma coisa é propor que tudo seja alcançado em até 15 minutos como o fez a prefeita de Paris, cidade com forma aproximadamente circular, com raio médio de 5,5 km. Outra coisa é propor “a cidade de 15 minutos” em municípios com distâncias internas de dezenas de quilômetros e com vazios urbanos imensos em seu perímetro urbano.
É obvio que um governo municipal não conseguirá mudar o perfil urbano da sua cidade em um mandato. Além dos recursos financeiros escassos, há escassez também de governabilidade ao ter que satisfazer a voracidade da sua base política de apoio.
Nem por isso se justifica não dar início a transformações que criem uma cidade mais humana, mais dinâmica e muito mais saudável às gerações futuras. Grande parte dos jovens segregados em suas próprias cidades, residindo a quilômetros de escolas secundárias ou técnicas, de empregos, de áreas sociais e esportivas, com seus mais belos anos de vida se escoando no teclado de seus celulares, tem razão de sobra para estar sem rumo e, consequentemente, sem esperança.
Quais mudanças devemos fazer para que o transporte público e a mobilidade urbana em geral tornem-se adequados a esta nova dinâmica urbana?
Bom tema para as próximas discussões.
Jurandir Fernandes foi secretário de Transportes de Campinas e secretário de Estado dos Transportes Metropolitanos (SP). Presidiu a Emdec (Campinas), a Emplasa (São Paulo), o Denatran (Brasília) e os Conselhos de Administração do Metrô-SP, CPTM e EMTU-SP. Coordena o Grupo de Mobilidade do Sindicato dos Engenheiros de São Paulo. É membro do Conselho Internacional do Centro Paulista de Estudos da Transição Energética (Unicamp) e do Conselho da Frente Parlamentar pelos Centros Urbanos (Brasília). É vice-presidente honorário da UITP (Bruxelas).