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O Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA), fundado em 1901, e a Associação Campineira de Imprensa (ACI), fundada em 1927, duas das mais importantes organizações culturais de Campinas, foram monitoradas pela chamada “comunidade de inteligência” estruturada durante a ditadura militar.
Documentos que constam do acervo do site Memórias Reveladas, do Arquivo Nacional, mostram que atividades realizadas nessas duas instituições, mesmo depois de encerrado o ciclo de governos militares, foram devidamente registradas em informes com o carimbo “Confidencial”, elaborados pela Polícia Federal e Agência de São Paulo do Serviço Nacional de Informações (SNI), o principal órgão da “comunidade de inteligência” criado pelo regime, logo no dia 13 de junho de 1964, pela lei federal 4.341, pouco depois portanto do golpe civil-militar de 31 de março daquele ano.
Por exemplo, o Informe 1203, de 18 de setembro de 1985, do Centro de Informações da Polícia Federal, relatou sobre a instalação no estado de São Paulo da União Cultural Brasil-União Soviética. O Informe documenta dados sobre a constituição de núcleos da União Cultural Brasil-URSS em várias cidades paulistas, inclusive Campinas.

O documento informa que a constituição do núcleo de Campinas aconteceu em reunião no dia 26 de outubro de 1984, na sede do Centro de Ciências, Letras e Artes, na Rua Bernardino de Campinas. O Informe cita então alguns dos presentes no lançamento, como o jornalista Bráulio Mendes Nogueira, que na época presidia o CCLA.
Mendes Nogueira tinha uma notória identificação com ideais de esquerda, tendo sido muito visado pelos “órgãos de inteligência” durante o regime militar.
Entre outros, participaram do evento o padre Milton Santana, que também foi monitorado de perto pela ditadura, e o próprio embaixador da União Soviética no Brasil, Vladimir Tchernichov.

Por outro lado, um informe do próprio SNI, de 6 de abril de 1984, revelou detalhes de outro evento realizado no Centro de Ciências, Letras e Artes, com tinturas ideológicas opostas, confirmando a vocação democrática da instituição.
No dia 23 de março de 1984, aconteceu em Campinas, na sede do CCLA, a primeira concentração regional do Movimento Cívico de Recuperação Nacional (MCRN), de orientação conservadora e idealizado pelo empresário Herbert Levy. O MCRN teve a sua primeira reunião realizada no dia 30 de janeiro de 1984, em plena emergência, portanto, do movimento pelas Diretas-Já, que levou milhões às ruas por eleições diretas para presidente da República, marcando o fim do regime militar.
O informe do SNI cita que participaram do evento no CCLA, entre outros, os então deputados federais Chico Amaral e Joaquim Del Bosco Amaral, o ex-candidato a prefeito de Piracicaba (e depois várias vezes deputado federal) Antonio Carlos de Mendes Thame e a professora Arita Pettená, que depois seria eleita vereadora. O “combate à estatização com apoio à iniciativa privada” era uma das bandeiras do Movimento Cívico de Recuperação Nacional.

Vigilância sobre a ACI
A Associação Campineira de Imprensa também foi monitorada pela “comunidade de inteligência”, mesmo depois do fim do regime militar. O Informe 0424, da Agência de São Paulo do Serviço Nacional de Informações, de 29 de dezembro de 1983, relata o lançamento na ACI da revista “Presença”, ocorrido a 29 de novembro daquele ano.
Segundo o documento do SNI, participaram do lançamento, entre outros, o vice-governador Orestes Quércia e o professor da Unicamp, Irineu Ribeiro dos Santos, membro do Conselho Editorial da revista. De acordo com o documento, o professor Ribeiro dos Santos assinalou no evento que, apesar de a revista “ser uma publicação a cargo de pessoas da esquerda nacional, o espaço estará aberto para qualquer facção, dentro de um espírito de abertura e debate”.

Também integravam o Conselho Editorial da revista “Presença”, entre outros, o então senador Fernando Henrique Cardoso, o economista Carlos Lessa e o cineasta João Batista de Andrade, além do médico David Capistrano da Costa Filho, um dos líderes do movimento pela reforma sanitária que resultou na criação do Sistema Único de Saúde (SUS) pela Constituição de 1988.
Ainda na ACI, segundo outro documento arquivado no Memórias Reveladas, foi realizado no dia 2 de fevereiro de 1986 o I Encontro sobre Movimento Comunitário do Partido Comunista Brasileiro (PCB) Campinas e Região.
Segundo o informe que também recebeu o carimbo de “CONFIDENCIAL” o encontro teve o objetivo de “discutir as teses dos comunistas sobre o movimento comunitário e sua participação na Constituinte”. No caso, a Assembleia Nacional Constituinte que seria eleita no final de 1986, com a tarefa de redigir uma nova Constituição para o Brasil pós-ditadura.
Segundo o documento, participaram do encontro do PCB na Associação Campineira de Imprensa, entre outros, Cândido Antônio dos Santos, o “Candinho”, presidente da Comissão Diretora Distrital Provisória do PCB do Tucuruvi, em São Paulo, e segundo-secretário da Confederação Nacional das Associações de Moradores, e David Zaia, membro da Comissão Diretora Municipal Provisória do PCB em Campinas.

David Zaia, que foi deputado estadual pelo Partido Popular Socialista (sucessor do PCB) e Cidadania entre 2007 e 2019, diz ter ficado surpreendido “com a atuação desse tipo de monitoramento da cidadania mesmo depois do fim do regime militar”.
Ex-presidente do Sindicato dos Bancários de Campinas, Zaia lembra que “no início de 1986 já tinha sido realizado o grande movimento pelas Diretas-J”.
Para Zaia, o registro do evento por “órgão de inteligência”, mesmo depois do final da ditadura, confirma a necessidade de “aprofundarmos cada vez mais a vigilância democrática, para que os órgãos de Estado ajam com transparência, e não estar a serviço de governos com objetivo político”.

ACI democrática
O diretor tesoureiro da ACI, Marcelo do Canto, se manifestou sobre as revelações. “A essência e o objetivo da Associação Campineira de Imprensa (ACI), desde sua fundação em 1927, sempre foram de reunir profissionais de imprensa e a sociedade civil para uma discussão ampla dos principais assuntos de nossa sociedade. É fato que isso ocorreu, sim, no período da ditadura como também ocorre até os dias de hoje em praticamente todos os segmentos de nossa sociedade. Nossas portas estão e sempre estiveram abertas para o debate em qualquer contexto relevante: seja politico, social, cultural e de temas que na atualidade estão cada vez mais em pauta”, argumentou.
“Grupos políticos, religiosos, profissionais liberais, ONGs e Conselhos, por exemplo, frequentemente promovem seus encontros em nossa sede e discutem os mais variados temas que dividem opiniões principalmente nesse momento de extrema polarização em nossa sociedade”, finalizou o jornalista.