Todo relacionamento bipessoal tem uma complexa e abstrata “contabilidade”. De cada lado, conforme o perfil dos envolvidos, teremos as posturas distintas e os acordos ou discórdias.
Se o perfil for mais credor, a pessoa tende a cobrar mais do outro, colocando nele as culpas e responsabilidades. Se for mais devedor, tenderá a se culpar e responsabilizar.
Remanejando conceitos da Cirurgia Plástica e da Psicanálise, teríamos, de um lado, a pessoa “aloplasta”, equivalente à credora, que se serve do que é externo e puxa tudo para si. A reforma, a plástica, é feita com as supostas dívidas do outro. As culpas e as responsabilidades não são dela. Ela se preenche à medida que cobra.
E, de outro, a pessoa “autoplasta”, devedora, que se servirá de si mesma, que fará as reformas com seus próprios recursos, ficando para si todas as culpas e responsabilidades, poupando o outro. Ela tenta se preencher à medida que oferece, que paga.
Uma pessoa vai comprar um sapato. Escolhe um na vitrine, entra na loja e aponta o escolhido. O vendedor tenta ser agradável, explica que não tem mais o número, apresenta com esforço e dedicação tudo o que estiver a seu alcance. Quando o cliente gosta, não serve bem. Quando ajusta o número no pé, não gosta tanto do modelo. Depois de baixar todo o estoque, eles desistem.
Temos uma relação bipessoal. Se o comprador for do perfil credor, “aloplasta”, sairá da loja reclamando, mostrando que o vendedor ficou em dívida com ele… Se o comprador for do perfil devedor, “autoplasta”, não conseguirá sair da loja sem comprar pelo menos um chinelo em promoção…
Alguns exageros ajudam a mostrar essas negociações, com as decepções e satisfações implícitas.
Moço de 30 anos, com hábitos de voyeur, costumava observar, em determinada hora da noite, algumas cenas do banho de uma vizinha em prédio próximo. Quando ela não se despia no local mais favorável à observação, ele se indignava, ficava muito revoltado, cobrando em gritos que só eram confusamente ouvidos por outros moradores do seu próprio prédio…
Marido com 43 anos e esposa com 44, 2 filhos em idade escolar, estavam em crise conjugal. Na terapia de casal, ele se mostrava bem solícito, sempre ofertando algo para convencê-la a manter o casamento. O terapeuta trabalhava para ajudar o casal, seja para que permanecessem juntos ou se separassem, da maneira mais saudável possível. Mostrava usualmente que, caso se divorciassem, tentariam se comportar como casal rescindido, mas família unida. Em uma sessão, ele chega dizendo: “Doutor, assinamos o divórcio”. O terapeuta, então, tenta debater com eles como seria a separação dos dois sem romper a família. Ele levanta-se e diz: “Por favor, espere um pouco”. Ajoelha-se diante da esposa e lança: “Então, amor, eu te dei tudo o que você queria. Até o divórcio! Fica comigo!”…
São muitos dados e detalhes implicados nos relacionamentos. Receitas e despesas numericamente objetivas e débitos e créditos abstratos, interpretativos.
No casal, a trajetória pode ser lembrada com bom humor: começam com “meu bem” e terminam com os ”meus bens”.
Nas famílias, os valores são subjetivados e dificultados. Entre pais e filhos, avós e netos, irmãos, primos, cunhados e outros agregados, há muita expectativa de que se comportem como aliados, que se tolerem, que renunciem a coisas pequenas. No entanto, muitas vezes, parentes e afins agem como inimigos. Nas crises, as personalidades aloplastas (credoras) se agigantam, cobrando mais ainda do que o habitual, e as devedoras (autoplastas) tentam se convencer de que têm algo a receber…
Uma dívida concreta, com número específico, seria logicamente fácil de ser contabilizada. Um irmão emprestou 20 mil reais para o outro. O devedor deveria ressarcir o credor, mas aí surgem as diferenças subjetivas: o mais velho foi o protegido da mamãe? O papai dedicou mais tempo ao caçula, estudando com ele nas recuperações?…
Qualquer um pode se convidar a fazer um exercício de auditoria amorosa. Pode ser útil, interessante, evitando até alguma surpresa desagradável!
Tente imaginar, com honestidade e modéstia, neste momento da vida, como se sente afetivamente nas suas relações importantes.
Diante do pai, da mãe, do cônjuge, do filho, do irmão, do sócio, do amigo, do colega, do parceiro de esporte, do vizinho, escreva a impressão que tem de si mesmo, definindo-se como autoplasta (devedor) ou aloplasta (credor), respectivamente.
Depois, conforme a coragem, peça para cada um dizer se a opinião dele condiz com a sua…
Joaquim Z. Motta é psiquiatra, sexólogo e escritor