Uma faca em mãos anônimas, possivelmente de uma pessoa de terno, corta o cordão umbilical que une uma árvore a um bebê indígena recém-nascido. O cartum com imagem chocante, de autoria de Gilmar Machado, venceu o Grande Prêmio – Troféu Zélio de Ouro, do 51º Salão Internacional de Humor de Piracicaba. O artista gráfico, conhecido como Gilmar, um baiano radicado em São Paulo, também ganhou a categoria Cartum com a mesma obra.
Os resultados da edição de 2024 do Salão Internacional de Humor de Piracicaba, maior e principal evento do gênero no país e um dos mais conhecidos no mundo, foram divulgados em cerimônia no último sábado, 31 de agosto, em cerimônia no Engenho Central. A questão indígena foi abordada por outra obra vencedora, a escultura de Synnöve Hilkner, artista de Campinas, com a imagem de Ailton Krenak. O filósofo e escritor indígena foi reconhecido recentemente como membro da Academia Brasileira de Letras. O primeiro indígena na ABL.
Outras categorias do Salão de 2024 também tiveram temas politicamente corretos, confirmando como o evento que teve a sua primeira edição em 1974 continua sendo uma espécie de pulso do que está pensando parcela significativa da opinião pública. A categoria Charge foi vencida por Hector Salas, da Bahia, com obra crítica sobre a precarização dos trabalhadores de aplicativo. O Prêmio Temático Mulher teve como vencedora Luma Rodrigues, do Rio de Janeiro, sobre as reincidentes manifestações machistas e de abuso contra as mulheres. O Prêmio Arcor – Direito das Crianças foi vencido por Rodrigo da Silveira, com obra referindo-se ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Grande parte das obras vencedoras no 51º Salão Internacional de Humor de Piracicaba, e em particular aquelas vinculadas à temática dos povos originários, reflete de fato a abordagem permanente de questões sensíveis pelas diferentes linguagens artísticas e cultura em geral no Brasil.
Já na primeira edição do mesmo Salão Internacional, em 1974, o trabalho vencedor em terceiro lugar foi uma charge do baiano Luiz Renato Bittencourt Silva, mostrando apenas uma árvore resistindo em meio ao avanço do desmatamento e servindo como abrigo aos pássaros sobreviventes. Estava claro que o Salão se tornaria, também ele, um espaço para os desenhistas e chargistas mostrarem a sua inquietação com a destruição da natureza no Brasil.
Em muitos outros campos da arte a preocupação com a devastação ambiental está presente. No cinema de animação, por exemplo, é igualmente crescente a abordagem da temática socioambiental, como no caso de obras de Mauricio Squarisi, co-fundador do Núcleo de Cinema de Animação de Campinas e autor de vários filmes.
O primeiro longa-metragem de animação brasileiro realizado por Anélio Latine Filho no início da década de 1950, “Sinfonia Amazônica”, nota Mauricio Squarisi, já foi um filme com fortes intenções de preservação ambiental (talvez subliminar) e respeito à cultura brasileira.
Como alguns exemplos da produção no Núcleo de Cinema de Animação de Campinas, com importante presença da temática ambiental, estão “A gota Borralheira”, “No Céu como na Terra” e “Um novo Começo”.
O Núcleo já realizou oficinas com crianças indígenas. Casos de “Çuikíri”, que foi realizado na Amazônia, em São Gabriel da Cachoeira, em 1991; “Kamenã” com indígenas no Xingu, de 10 etnias diferentes; “Wirandé”, realizado em 1992 com um índio baré e crianças campineiras; “Stop Poluição”, realizado em Moçambique com jovens estudantes da Escola Nacional de Audiovisual; “Animando o Pantanal”, realizado em Poconé-MT com crianças pantaneiras.
Nas artes plásticas, a temática socioambiental é também presença crescente. Para citar apenas algumas das obras do artista de Campinas Ricardo Cruzeiro: “Crianças Biodegradáveis”, “Alucinação em Praia Radioativa”, “Velho Menino e Cão Recebendo Dosagem Atômica”:
Enfim, é fértil o diálogo entre as artes e a inquietação socioambiental e sobre a situação dos povos originários. Todas essas obras chegam ao grande público, que de alguma forma se conscientiza sobre a fundamental importância de defesa dos recursos naturais e dos direitos desses povos.
É vital, essencial, entretanto, que essa crescente conscientização se transforme em atitudes concretas, permanentes, em defesa do meio ambiente em geral, área em que o Brasil é uma potência global. Tem 12% da água doce do mundo, a maior biodiversidade planetária e um imenso potencial para energia renovável, cujo incremento é uma das únicas saídas para a emergência climática em curso e que tende a se aprofundar nos próximos anos. Próximos mesmo, não em futuro remoto.
Essa concretização da consciência ambiental, expressa em tantas obras de arte, em ações efetivas, transformadoras, provavelmente virá, entre outros vetores, com uma educação socioambiental sistemática, abrangente, multidisciplinar. Os novos Planos Municipais de Educação, que os prefeitos proximamente eleitos (ou reeleitos) terão que liderar, e mesmo o novo Plano Nacional de Educação, que está em debate no Congresso Nacional mas que também precisa ser amplamente discutido na sociedade brasileira, não poderão deixar de lado uma abordagem mais incisiva da dimensão socioambiental, que está adquirindo contornos dramáticos no Brasil e em todo planeta.
Obras como aquelas vistas no 51º Salão Internacional de Humor de Piracicaba são inspiradoras, novos motivos de esperança. Mas é preciso avançar mais, o tempo está se esgotando, como se viu nos últimos dias, com a proliferação de queimadas por todo o território nacional.
José Pedro Martins é jornalista, escritor e consultor de comunicação. Com premiações nacionais e internacionais, é um dos profissionais especializados em meio ambiente mais prestigiados do País. E-mail: josepmartins21@gmail.com











