Por José Pedro Soares Martins
Especial para o Hora Campinas e Agência Social de Notícias
Em março de 1996, o deputado uruguaio José Alberto Mujica Cordano, também conhecido como Pepe Mujica e então pertencente ao Movimento de Participação Popular (MPP), depois de anos de ligação com o Movimento Libertação Nacional Tupamaros (MLN-T), participou do Congresso Regional do Movimento dos Sem-Terra em São Leopoldo (RS). A atividade foi devidamente registrada por agentes da chamada “comunidade de informações” ou “comunidade de inteligência” brasileira, em documento classificado como Confidencial.
Este é um claro exemplo de que líderes de grupos de esquerda de países vizinhos ao Brasil também foram espionados de perto pela “comunidade de inteligência” brasileira, desde os tempos áureos do poderoso Serviço Nacional de Informações (SNI) e que esse monitoramento prosseguiu mesmo depois do fim da ditadura militar no Brasil (1964-1984) e também no Uruguai (1973-1985).
O monitoramento sistemático de Pepe Mujica é comprovado nos documentos a que a Agência Social de Notícias (ASN) e o portal Hora Campinas tiveram acesso e que estão arquivados no site Memórias Reveladas, do Arquivo Nacional. O site contém um número impressionante de documentos produzidos pelos “serviços de inteligência” e que podem ser acessados a qualquer hora do dia, bastando uma abertura de conta pessoal.
Documento secreto do SNI sobre tupamaros presos em 1970. Foto: Reprodução
Pepe Mujica é membro do seleto clube de participantes de grupos guerrilheiros, que lutaram contra regimes ditatoriais instalados na América Latina nas décadas de 1960 e 1970, e que chegaram ao cargo público máximo de seus países. Depois do retorno à democracia no Uruguai e de ocupar vários cargos eleitos, como de deputado pelo MPP, um dos grupos reunidos na Frente Ampla de centro-esquerda, Mujica foi eleito presidente para o período de 1 de março de 2010 a 1 de março de 2015.
Neste período, Pepe, falecido no último dia 13 de maio, se tornou uma referência mundial por sua sobriedade e dignidade. Outro raro exemplo de integrante do clube de ex-membros de grupos de guerrilha que chegaram à Presidência da República é o da brasileira Dilma Rousseff, que esteve no cargo de 1 de janeiro de 2011 a 31 de agosto de 2016, quando sofreu processo de impeachment. Como Mujica, Dilma foi torturada no cárcere.
Os registros de Pepe Mujica na “comunidade de inteligência” brasileira acompanham toda a sua carreira política, desde a sua prisão com outros tupamaros em 1970. O seu nome aparece em um documento secreto do SNI com a lista de “terroristas tupamaros presos” naquele ano. Pepe foi preso várias vezes e conseguiu fugir em algumas delas. O período mais longo na prisão foi entre 1972 e 1985, quando a ditadura uruguaia terminou. Foi torturado e em muitas ocasiões ameaçado de morte.
Documento confidencial com relação de novos membros do Comitê Central do Movimento Tupamaros. Foto: Reprodução
Com a redemocratização, continuou por um período no MLN-Tupamaros. Um documento de 1988 mostra que o monitoramento da “comunidade de inteligência” brasileira sobre Pepe prosseguia, mesmo com o fim do governo militar no país vizinho.
O documento apresentava a “Relação de Integrantes do Comitê Central (CC) e Comitê Executivo do Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros – Uruguai”. José Alberto Mujica Cordano, o Pepe, é o quarto da lista, logo em seguida de Raul Sendic Antonaccio, histórico fundador do grupo Tupamaros em 1962. O documento contém o organograma da direção do MLN-Tupamaros.

Ainda na condição de membro da Executiva Nacional do MLN-Tupamaros, Pepe participa em setembro de 1991 do Seminário Internacional do PT – Estratégias de Poder na América Latina, realizado em Porto Alegre (RS), como parte da preparação para o Congresso do Partido dos Trabalhadores em novembro daquele ano.
Mujica participa de mesa-redonda no dia 13 de setembro, ao lado de Marco Aurélio Garcia, então membro da Executiva Nacional do PT, Sérgio Rodrigues, da Executiva Nacional do Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT) do México; Robson Vera, do Partido Socialista do Chile; e Gerson Silva, da Executiva do PT/RS.
O Seminário foi devidamente acompanhado por agentes da “comunidade de inteligência”, que fizeram um relatório detalhado. Segundo o documento, Pepe criticou o discurso tradicional dos grupos de esquerda, que não seria entendido pela classe trabalhadora. “Segundo o mesmo, se as coisas continuarem nesse rumo , nos próximos vinte anos, a maioria do povo não terá acesso a nada”, relata o documento classificado de Confidencial.
O documento prossegue registrando que, segundo Pepe, “o avanço neoliberal que ocorre hoje no Brasil já aconteceu em toda a América Latina e que a estratégia de poder da esquerda consiste em dar respostas a esse avanço capitalista”.
Ainda de acordo com o documento, Mujica salientou que “a única estratégia para os latino-americanos é mostrar às imensas massas o poder que elas têm nas mãos. ´Não há estratégia se não conseguimos retirar a venda que cobre os olhos das imensas massas , permitindo que vejam do que são capazes´”.
Pepe Mujica foi eleito deputado e nessa condição participou do Congresso Regional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em São Leopoldo (RS), na primeira semana de março de 1996. Mais uma vez a atuação de Pepe foi documentada pela “comunidade de inteligência” brasileira, mais de uma década depois do fim das ditaduras no Brasil e Uruguai.
O nome de Mujica aparece no documento “Atividades de árabes, de origem palestina, na fronteira do Brasil com o Uruguai”. O documento cita supostas relações entre o MST e o MLN-Tupamaros.
Documento confidencial com relato de seminário internacional do PT em 1991. Foto: Reprodução
Com o avanço da redemocratização no Uruguai, Pepe Mujica ajudou a fundar o Movimento de Participação Popular (MPP), um dos integrantes da Frente Ampla que chegaria ao poder em 2005 com Tabaré Vázquez.
Mujica foi então nomeado ministro da Agricultura. Em 25 de outubro de 2009, Pepe ganha o primeiro turno das eleições presidenciais uruguaias, como candidato da Frente Ampla, recebendo 47,96% dos votos. Disputa e vence o segundo turno, a 29 de novembro, recebendo 52,60% dos votos, contra Luis Alberto Lacalle, candidato do Partido Nacional.
Pepe fez um governo progressista, aprovando leis como a descriminalização do aborto e a lei do matrimônio igualitário, permitindo a adoção aos casais homossexuais. Ele chamou a atenção mundial por seu modo de vida sóbrio, mantendo os hábitos de antes da eleição para a Presidência, como o de se locomover em seu adorado fusca azul. A política com meio de enriquecimento foi sempre criticada por Pepe, que fez na prática o que defendia em discurso, o que não tem sido muito comum em homens públicos.
O monitoramento de líderes de esquerda de países do Cone Sul, por agências da “comunidade de inteligência” do Brasil, e em particular pelo SNI, não representa surpresa, considerando que havia a colaboração entre os governos ditatoriais da região no marco da chamada Operação Condor. O “batismo” da Operação Condor aconteceu em reunião ocorrida no Chile, entre os dias 25 de novembro e 01 de dezembro de 1975, com a participação de representantes dos governos militares da região.
O fundador do Movimento Justiça e Direitos Humanos (MJDH), sediado em Porto Alegre (RS), Jair Krischke, observa que os representantes brasileiros não assinaram a data de “fundação” da Operação Condor. “Este elemento levou algumas pessoas a afirmarem que o Brasil não participou da Operação, o que absolutamente não é verdade, como demonstra farta documentação”, completa Jair, um dos principais nomes da luta pelos direitos humanos na América Latina, com forte atuação durante os governos militares.
Paulo Sergio Pinheiro, referência internacional em direitos humanos. Foto: UN independent international commission of inquiry on the Syrian Arab Republic, Geneva
EXEMPLO ÚNICO
A biografia de Pepe Mujica, e em especial a forma como exerceu o poder como presidente do Uruguai, chamou a atenção mundial e é sempre elogiada. Esta é a opinião de Paulo Sergio Pinheiro, uma das personalidades que integram a Comissão Arns, como é conhecida a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns. Pinheiro é autor dos Princípios de restituição de moradia e propriedade para refugiados e deslocados internamente da ONU [Pinheiro Principles] e integrou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da OEA. Desde 2011 preside a Comissão de Investigação das Nações Unidas sobre a República Árabe da Síria:
“Mujica foi um dirigente político excepcional. Depois de submetido a tortura e prisões, inclusive no fundo de um poço, depois de libertado não perdeu tempo e consagrou tudo seu tempo à política. Jamais esquecendo que a única referência que conta mesmo na política é em relação às condições de vida do povo. Como presidente da República jamais perdeu essa referência nas políticas de Estado. Depois da presidência a sua pregação aos jovens e em defesa da causa ecológica foi matéria de todo dia da sua vida. Mas o que mais me encanta mais foi não ser transformado pelas benesses do poder, palácios, automóveis de luxo, férias privilegiadas, talvez mundo a afora seu exemplo é único. Ontem revi um vídeo da visita à residência, à ‘finca’ modestíssima de Pepe Mujica em março de 2015 do rei Juan Carlos de Espanha, que com bengala mal conseguia andar no terreno da casa. Mujica guiava o Rei carinhosamente para se sentar numa poltrona de madeira, tudo na maior simplicidade, sem concessões deslumbradas“.
Veja o vídeo do encontro de Pepe Mujica com o Rei Juan Carlos da Espanha: