A Comunidade Europeia definiu o Câncer como uma das sete prioridades e a única na área da saúde. Faço aqui um breve relato do último Congresso da Sociedade Europeia de Oncologia Médica (ESMO) que foi realizado em novembro do ano passado. Foi um evento amplo, bem organizado e com grande público, com aproximadamente 34.000 participantes, realizado no Centro de Conferências e Exposições Fira Gran Via, em Barcelona. Mais de 2.100 resumos foram apresentados no evento, resultando em palestras de quase 600 especialistas de 149 países e mais de mil apresentações de pôsteres sobre uma ampla variedade de temas oncológicos.
Os principais temas do evento incluíram colaboração para aprimorar o tratamento oncológico, considerações sobre sobrevivência e qualidade de vida, novas combinações de tratamento para melhor prognóstico do paciente, saúde da mulher, acessibilidade ao tratamento e inovações tecnológicas. Todos os temas foram permeados pela reflexão sobre os desenvolvimentos recentes e pela visão de futuro sobre como esse trabalho provavelmente progredirá, tanto a curto quanto a longo prazo. Destaque inicial ao câncer cervical uterino que é o quarto tipo de câncer mais comum em mulheres em todo o mundo, com mais de 600.000 diagnósticos e 350.000 mortes relatadas em 2022, os avanços nas opções de tratamento são cruciais para melhorar a taxa de sobrevida atual, que é de cerca de 50%.
Temas de saúde da mulher foram abordados em diversos simpósios ao longo do evento, com duas sessões particularmente concorridas: a primeira focou na menopausa e no tratamento oncológico, enquanto a outra questionou as premissas anteriores sobre a amamentação após o câncer de mama. Ambas as sessões demonstraram crescente conscientização e consideração pela saúde da mulher, além da preservação da fertilidade, no desenvolvimento de diretrizes para o tratamento do câncer.
Os desenvolvimentos em tecnologias oncológicas, tanto para detecção quanto para tratamento, foram bem explorados nas palestras e apresentações de pôsteres. Conjugados anticorpo-fármaco (ADCs) e degradadores de proteínas foram novas ferramentas interessantes para o tratamento de uma variedade de cânceres, incluindo aplicações em cânceres resistentes a medicamentos. Nas apresentações de ADCs, a toxicidade foi um tema recorrente, destacando a importância de equilibrar os benefícios do tratamento com os riscos de efeitos colaterais desagradáveis, que impactam a tolerabilidade a longo prazo. Alguns degradadores de proteínas, como quimeras de direcionamento de proteólise (PROTACs) e colas moleculares, podem permitir o direcionamento de alvos anteriormente “inviáveis” para tratar cânceres desafiadores, reduzindo ao mesmo tempo a resistência ao tratamento.
A inteligência artificial (IA) foi outra parte deste tema-chave, com foco particular no desenvolvimento de sistemas multimodais mais complexos; no entanto, foram incluídos alertas sobre a necessidade de melhorar a infraestrutura para monitorar a degradação de modelos e recomendações claras para usar ferramentas de IA como mecanismos de raciocínio científico em vez de bancos de dados de conhecimento. A inteligência artificial deve ser usada como motor de raciocínio científico em vez de bases de dados de conhecimento. Sobre a questão da acessibilidade aos cuidados e os desafios no tratamento oncológico, duas sessões impactantes realmente se destacaram. Houve um grande simpósio discutindo o objetivo de combater o câncer em todo o mundo e o trabalho da Organização Mundial da Saúde (OMS) para apoiar esse esforço.
O câncer é uma doença não transmissível prioritária para a OMS, com a qual a ESMO mantém um relacionamento de longa data. O foco está principalmente em intervenções preventivas, incluindo educação sobre os riscos do tabagismo, alto índice de massa corporal (IMC), pressão alta e poluição do ar, com um olhar claro sobre a necessidade de abordar as limitações dos serviços, melhorar a acessibilidade, considerar o cuidado em situações adversas, instabilidade social e barreiras à adesão ao tratamento.
Países de baixa e média renda (PBMRs) como o Brasil enfrentam taxas de mortalidade 70% maiores devido à saúde precária, e o investimento em abordagens preventivas, como a vacinação contra o papilomavírus humano (HPV), o rastreamento do câncer e a imunização contra a hepatite B, pode reduzir a carga posterior do tratamento do câncer sobre os recursos limitados. A colaboração ESMO-OMS está trabalhando para moldar a agenda do câncer e fornecer orientação a uma rede internacional de médicos e pacientes; no entanto, o envolvimento dos governos será fundamental para o sucesso.
A inclusão do tratamento do câncer nos orçamentos e investimentos nacionais para apoiar uma força de trabalho sobrecarregada foi destacada como crucial para evitar o esgotamento dos oncologistas e a perda de médicos treinados devido à baixa qualidade de vida, o que levará a uma qualidade de atendimento limitada.
Outro simpósio poderoso abordou o tema do tratamento do câncer em circunstâncias excepcionais; uma autora compartilhou suas experiências como enfermeira oncológica após o terremoto de fevereiro de 2023 na Turquia e na Síria e os desafios contínuos na prestação de cuidados; outra pesquisadora compartilhou a perspectiva de um paciente sobre o impacto da guerra na Ucrânia no tratamento do câncer, incluindo a perda de cuidados que preservam a fertilidade e o aumento do risco de morte devido à escassez de medicamentos que atrasa os tratamentos; mais um estudo compartilhou sua realidade fornecendo cuidados paliativos oncológicos na Palestina, com recursos limitados, atrasos de vistos e destruição de propriedades, resultando em aumento das taxas de mortalidade e redução do atendimento neste dramático cenário.
Os três palestrantes destes três estudos foram aplaudidos de pé pelo público, alguns dos quais foram levados às lágrimas pelos relatos honestos dos desafios que enfrentam diariamente. Esta sessão realmente destacou o impacto esquecido da adversidade em pacientes com câncer e profissionais que trabalham em ambientes de câncer.
Outros tipos de sessão incluíram debates, como a aplicabilidade da imunoterapia em pacientes e qual profissional de saúde deve ser responsável pelo tratamento geral do câncer; apresentações de resumos curtos, cujos temas incluíam a melhoria da qualidade de vida por meio do desenvolvimento de novos tratamentos para sintomas associados ao câncer, como caquexia, náusea, delírio e controle da dor; eventos de treinamento e desenvolvimento de pesquisadores em início de carreira e enfermagem oncológica; e mais de mil apresentações de pôsteres.
Como na Europa, devemos dar absoluta prioridade ao enfrentamento deste grupo terrível de doenças que afeta de maneira distinta pobres e ricos com desconcertante piora prognóstica dos grupos de maior vulnerabilidade. Implantar Centros avançados e integrados de câncer, registros de base populacional para termos informações corretas sobre o câncer, bem como o desenvolvimento de um programa robusto e permanente, devem ser absoluta prioridade ao Brasil.
Carmino Antônio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020. Secretário-executivo da secretaria extraordinária de ciência, pesquisa e desenvolvimento em saúde do governo do Estado de São Paulo em 2022, Presidente do Conselho de Curadores da Fundação Butantan, membro do Conselho Superior e vice-presidente da Fapesp, pesquisador responsável pelo CEPID CancerThera da Fapesp.











