Em Campinas, a digitalização dos serviços públicos avança, mas a inclusão digital da população não acompanha o mesmo ritmo. A pesquisa Vozes Campineiras, realizada pela FEAC, evidencia um cenário que quem vive e atua nas periferias já conhece bem: para grande parte da população, especialmente pessoas com deficiência, idosos e moradores de regiões mais vulneráveis, acessar plataformas digitais da prefeitura ainda é uma tarefa quase impossível.
Os relatos coletados revelam problemas que vão desde interfaces pouco acessíveis e excesso de etapas até a completa impossibilidade de concluir um pedido ou envio de documento. É comum ouvir que “não dá para saber onde clicar”, “não consigo anexar nada” ou “o sistema trava no celular”. Em muitos casos, algo que deveria simplificar a vida do cidadão acaba funcionando como uma transferência da burocracia para dentro das casas das pessoas — que passam horas tentando marcar uma consulta, solicitar um serviço ou resolver uma pendência básica.
Digitalizar não é precarizar. O problema não é a tecnologia, mas como ela tem sido implementada. Quando sistemas públicos são mal planejados, pouco acessíveis e não levam em conta a realidade dos usuários, o resultado é exclusão — especialmente entre quem já enfrenta desafios de acesso, renda e escolaridade.
Letramento digital: a barreira invisível
Além das falhas de usabilidade, a pesquisa mostra um segundo obstáculo decisivo: o letramento digital. Mesmo que uma plataforma tenha a melhor interface possível, ela continuará inacessível para quem nunca teve oportunidade de aprender a navegar, anexar documentos, entender etapas de um formulário ou lidar com procedimentos mínimos de segurança digital.
Nas periferias, essa barreira é ainda mais evidente. É comum que o celular seja o único dispositivo da família — e muitos serviços públicos simplesmente não funcionam bem nele. Um exemplo é o Sistema C, plataforma importante de transparência da prefeitura, praticamente inutilizável via mobile. Quando o próprio ambiente digital se torna uma barreira, a cidadania fica restrita a quem tem mais recursos, tempo ou conhecimento.
Por isso, inclusão digital não é apenas acesso à internet. É formação, acompanhamento e criação de condições reais para que as pessoas possam exercer plenamente seus direitos.
Formação tecnológica como caminho para o trabalho e a renda
A pesquisa aponta que a falta de oportunidades de emprego é percebida como o principal problema relacionado à pobreza em Campinas. E quase 30% dos entrevistados afirmam que a qualificação profissional é a principal saída para mudar esse cenário. Isso ecoa o que vemos diariamente nas rodas de conversa, nas escolas e nos projetos que desenvolvemos: jovens querem aprender, querem trabalhar, querem acessar o futuro — mas encontram portas fechadas pela falta de formação.
O caso de Arthur, jovem apaixonado por tecnologia que aparece na pesquisa, é representativo. Mesmo com interesse e dedicação, ele enfrentou exigências técnicas e socioeconômicas que dificultam a entrada no mercado — realidade compartilhada por milhares de jovens das periferias campineiras.
Iniciativas de formação tecnológica em STEAM, transformação digital e competências socioemocionais têm se mostrado caminhos eficientes para ampliar a inclusão econômica. Programas de introdução à tecnologia, cursos básicos de informática, clubes de programação e trilhas de empregabilidade têm potencial para transformar trajetórias, especialmente quando são gratuitos, acessíveis e territorializados.
Juventudes e prevenção: tecnologia também protege
Outro ponto sensível revelado pela pesquisa é o medo das mães em relação ao futuro dos filhos — especialmente quanto ao risco de envolvimento com drogas e criminalidade. Projetos sociais, esportivos e culturais aparecem como elementos centrais para afastar jovens de contextos de violência.
E a formação tecnológica também cumpre esse papel.
Quando jovens participam de projetos de robótica, criação digital, empreendedorismo comunitário ou cursos no contraturno escolar, eles permanecem mais tempo na escola, constroem repertório, fortalecem vínculos e ampliam perspectivas. Não se trata apenas de ensinar tecnologia: trata-se de abrir caminhos e diminuir vulnerabilidades.
Empreendedorismo de base comunitária: outro vetor de inclusão
A pesquisa também destaca a importância de trilhas de trabalho e renda que incluam microcrédito, incubação de pequenos negócios, formação empreendedora e incentivo à economia local. Nas periferias de Campinas, há uma enorme potência criativa — mas falta apoio para transformá-la em renda estável.
Programas de empreendedorismo comunitário, especialmente os voltados para economia criativa e tecnologias acessíveis, têm um impacto profundo. Eles ajudam pequenos negócios a se estruturarem, ampliam oportunidades e fortalecem redes locais de trabalho — essenciais para a vitalidade econômica das periferias.
Educação digital básica: onde tudo começa
Por fim, o relatório reforça algo que considero decisivo: capacitar a população para o digital é condição essencial para garantir cidadania. Só em 2024, centenas de jovens, adultos e pessoas idosas participaram de programas de inclusão digital em diversas regiões de Campinas, com aulas semanais e formações contínuas.
Esses cursos — de introdução ao computador, navegação segura, uso de ferramentas públicas digitais ou criação de currículo — são, muitas vezes, o primeiro passo para destravar direitos. Sem eles, o cidadão não consegue acessar serviços de saúde, benefícios sociais, oportunidades de trabalho ou programas de qualificação. Com eles, uma porta se abre.
Um caminho possível
O cenário apresentado pela pesquisa não é novo, mas precisa ser enfrentado com mais seriedade. Campinas é um polo tecnológico que abriga grandes empresas, universidades e talentos. Porém, para que esse ecossistema seja realmente inclusivo, precisamos garantir que a base — sobretudo as periferias — também participe da transformação digital.
Isso exige:
⇒ melhoria urgente da acessibilidade e usabilidade dos serviços públicos digitais;
⇒ políticas estruturadas de letramento digital;
⇒ expansão da formação tecnológica para jovens e adultos;
⇒ apoio a pequenos negócios e empreendedores das comunidades;
⇒ presença territorial de projetos que conectem educação, tecnologia e cidadania.
Inclusão digital não é um detalhe técnico. É uma política de equidade, um instrumento de justiça social e uma estratégia para reduzir desigualdades — especialmente em uma cidade diversa e desigual como Campinas.
A transformação tecnológica só será sustentável quando for liderada pelas próprias comunidades. E isso começa com acesso, formação e oportunidade.
Geraldo Barros é analista de sistemas, desenvolvedor, educador e fundador da Casa Hacker, organização de educação STEAM e inovação social com atuação em Campinas e regiões periféricas do país.











