Talvez pela saturação causada pelas restrições sanitárias trazidas pela pandemia, talvez pela esperança de ver finalmente acabar um dos piores e mais nefastos governos da história do Brasil, talvez pelo desgaste excessivo vindo da invasão do trabalho remoto e da constante necessidade de exposição nas redes virtuais – ou pela soma de tudo isso, a virada do ano tem ampliado a eufórica (e milagrosa) contagem regressiva para o fim dos problemas que nos assolam e um recomeço assim que os mostradores luminosos contarem 2022.
Na expectativa de poder dar um passo à frente (ou vários) e deixar para trás uma sequência de acontecimentos terríveis, não podemos deixar de questionar se, por descuido, nostalgia ou apego, estaríamos, na verdade, esperando por algo “novo” tentando repetir ou recuperar experiências cujo fracasso já é conhecido ou que, por mais que possam ter cumprido algum propósito antes, já não servem mais para superar os problemas que enfrentamos hoje.
É possível que, contaminada pela sensação de reversibilidade dos ambientes virtuais e pela ilusória onipotência sobre dispositivos digitais, grande parte da população prefira seguir alienada de si mesma e do avanço de políticas retrógradas e uma agenda destrutiva que ataca não só as pessoas que, hoje, sofrem com fome, desemprego, intolerância e violência, mas, também, das próximas gerações – pessoas que terão de enfrentar um mundo tomado por obstáculos que já haviam sido (ou deveriam ter sido) superados.
Se, por um lado, vemos avançar tecnologias como 5G, missões turísticas espaciais e o metaverso em nossos celulares, por outro é notável a perseguição do governo, apoiado por grupos de incautos e raivosos, à produção da ciência e da tecnologia no Brasil, provocando apagões, demissões coletivas e a corrosão da credibilidade da ciência, ameaçando nos devolver ao obscurantismo de séculos passados, quando cientistas eram queimadas como bruxas, excomungados como hereges por acabar com mitos que sustentavam tabus e justificavam brutalidades que, infelizmente, ainda não foram totalmente erradicadas.
Da mesma forma, o desejo de paz, amor e saúde parecem avessos às guerras, ao armamento, ao desmatamento e ao extermínio de seres vivos que sustentam um delicado e primordial equilíbrio das relações ecológicas, reduzidas a ciclos e recursos econômicos explorados pela ganância de minorias elitizadas que controlam o dinheiro, as armas e os espetáculos.
Não é possível “dar crtl+z” ou clicar em “voltar” diante do agravamento dos desequilíbrios climáticos e eventos naturais cada vez mais extremos; nem reverter a extinção de espécies; de pessoas que morreram sem vacina e sem alimento; ou recuperar o patrimônio imaterial apagado pela imposição de culturas hegemônicas que atravessam séculos corroendo e contaminando tudo aquilo de que não podem se apropriar e mercantilizar.
Enquanto crescem os lucros bilionários do agronegócio, da mineração e das companhias transnacionais, aumentam a fome, o desemprego, a violência e a exploração socioeconômica. Multas indecentes são negociadas e orçamentos secretos selam pactos de corrupção sob a farsa de embates cinematográficos travados entre Executivo, Legislativo e Judiciário, esquerda, centrão e direita, CPIs que seguem afundando pautas urgentes, como reforma agrária, soberania sobre recursos estratégicos, fortalecimento de democracias populares e universalização dos direitos humanos, sob densas cortinas de fumaça trazidas por manchetes sensacionalistas, dancinhas de tik-tok e mensagens de conformismo motivacional – na igreja, na empresa, no cinema e nos grupos de zap.
Pautas individualizadas, modeladas por algoritmos a serviço dos poderosos, vão se misturando às necessárias reformas estruturais (por educação, saúde, habitação, alimento, dignidade), nivelando grosseiramente as lutas por direitos sociais e a preservação ambiental com a histeria de grupos fascistas, conservadores, negacionistas, e pelo egocentrismo imediatista que, apesar de embalagens brilhantes regurgitadas como novidade, tencionam para que tudo continue exatamente como está: os homens brancos mais ricos do Brasil (0,56% da população adulta) concentrando a mesma riqueza que todas as mulheres negras adultas juntas (26% da população).
No ano novo que se aproxima, a novidade será um novo “novo normal”?
Se a receita de sopa de ossos passar no horário nobre (ou viralizar nas redes sociais), parecerá menos terrível revirar o lixo em busca de comida? Vendo quanto custa um iate ou quanto faturaram os bancos em 2021, a gasolina não parece, assim, tão cara. A filha do dono empreendeu e dobrou os milhões que herdou – então eu deveria conseguir também, me dizem. Mas se nem mesmo a morte de mais de 620 mil pessoas no Brasil em decorrência da Covid-19 é suficiente para convencer algumas pessoas sobre a importância da vacinação, como explicar que não há milagre ou simpatia que traga mudanças?
Façamos de 2022 algo que vá além de mais uma temporada que, anestesiados, seguimos vendo passar.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e artes.