Mais um dia. Mais um dia.
De segunda a sexta, a mesma rotina. Edgar acorda no seu pequeno apartamento no centro de São Paulo. Cedo. O sol ainda está começando a mostrar sua cara. O trânsito da avenida já ruge alto, sem pausas, regado por uma dose excessiva de buzinas.
Ele não pode perder tempo. Da cama para o chuveiro. Do chuveiro para o quarto. Do quarto para a cozinha. Ufa. Banheiro e rua. Cinco andares de escada e pronto. Lançado à imensidão da metrópole.
Depois de uma corrida leve para alcançar o ônibus. Mais 40 minutos de trajeto. Um pouco de aperto e o sufoco causado pela máscara N95, Edgar chega ao seu ganha pão. O famigerado e necessário trabalho.
A partir do momento que ele passa pela porta giratória do prédio em que trabalha, assume um personagem. Engajado. Motivado. Produtivo. Assertivo. Responsável. Com senso de dono. Ético. Perfeito.
São tantos os adjetivos corporativos atribuídos ao pobre Edgar que, mesmo antes de desembocar do elevador para o seu andar, ele já se sente cansado.
De qualquer forma, Edgar gosta de trabalhar naquele lugar. Fez bons amigos. Conheceu bastante gente. Aprendeu muita coisa nova. Mas, no auge dos seus 32 anos, ele tomou uma decisão. Não vai mudar de ideia. Não vai mesmo. Ele prometeu para si mesmo.
Depois de quase dois anos trabalhando de casa. A volta forçada para o escritório. A pandemia que não termina. O chefe controlando o tempo que ele está on-line. Uma sequência sem fim de reuniões. O imediatismo das relações. A pressão por estar sempre disponível. Tudo isso fez com que ele repensasse a prioridade do trabalho em sua vida.
Hoje é o grande dia! Pensou.
O relógio marcou 10h35. Como de costume, o chefe virou a esquina do andar. Sempre muito sorridente, político e, segundo Edgar, desestimulante. Ele conhecia bem aquele senhor. Quase três anos vendo a mesma cena todos os dias. 10h37. Depois das gracinhas matinais com a nova estagiária, o “big boss” despenca em sua cadeira.
10h40. Edgar respira fundo, levanta-se e vai em direção ao seu “querido” líder. Pede licença e senta-se na beirada da cadeira, de frente para o seu algoz. Senhor Ronaldo, como gosta de ser chamado, olha para ele com um ar de desprezo misturado com pena. “Pobre rapaz, parece que a vida não está sendo boa com ele”, pensa. Mas, logo retoma o sorriso plástico e pergunta, com um cinismo característico, em que pode ser útil.
Edgar não titubeia. Treinou aquele discurso mentalmente por diversas vezes. Ronaldo só observa – pasmo – com a falta de consideração de seu subalterno. Onde já se viu um ser, em plena crise, pedir demissão daquela empresa maravilhosa? Enfim, é mais um que, na imaginação dele, está trocando o certo pelo incerto.
Mas é fato. Edgar se juntou aos milhares de trabalhadores – não só no Brasil, como no mundo, que decidiram pedir as contas em meio ao fenômeno da “grande resignação”. Para ele, assim como para outros jovens profissionais brasileiros, a busca de um propósito e um novo equilíbrio entre vida pessoal e trabalho é um componente obrigatório para a permanência em determinada empresa. Ainda mais depois da pandemia, que ainda não acabou.
12h37. Missão cumprida. Burocracia vencida. Edgard se lança novamente à imensidão da capital paulista. Sem rumo, com boas ideias e muita vontade de fazer diferente. Deixa para trás um peso que o sufocava há algum tempo. “Agora, as guerras são outras” – reflete no caminho de volta para casa.
Perto das 16h, um e-mail chega à caixa dos antigos colegas de Edgard. Formal. “Venho por meio deste e-mail informar que Edgard Murilo de Azevedo, até então, analista de suprimentos, não faz mais parte do quadro de colaboradores da nossa empresa. Estamos passando por um momento de reestruturação em nossas equipes e o perfil do ex-colega não era mais compatível com as exigências dos nossos grandes desafios”. Assinado: Senhor Ronaldo.
Pobre, Senhor Ronaldo!
Flávio Benetti é professor, palestrante, publicitário e especialista em Comunicação interna e endomarketing. Considera-se um cara apaixonado pela vida, curioso por natureza, fã de tecnologia, design e fotografia