Se culpa tivesse cor, ela seria cinza, mistura dos extremos preto e branco que brota em difuso terreno. Vem da imprecisão dos contornos o poder a ela atribuído: pode ser sinal de humildade (assumi-la, por exemplo) ou exaltação ao ego – quando cremos que certas situações seriam diferentes sob nossa intervenção.
Em “Drive My Car” (Doraibu mai kâ, Japão, drama, 2022, 2h59 min.), de Ryūsuke Hamaguchi, ganhador do Prêmio da Crítica, em Cannes, no ano passado, do Oscar de Filme Internacional, neste ano, e que acaba de estrear no Now/Claro Net, a culpa norteia uma história na qual os acontecimentos tornam-se menos importantes que o reflexo deles sobre os personagens.
O resultado é poderosa narrativa de três horas constituída de dor e culpa e na qual sobressaem poucas lágrimas, muitas pausas e perplexidade ante as impossibilidades. Para descrever esse cenário, o diretor estabelece cadência na qual tem controle absoluto das emoções afim de manter o devido distanciamento do espectador.
Tudo parece frio, como nós, tropicais, imaginamos que sejam os japoneses, longe das exacerbações, exaltações e proximidades.
O flagra de uma cena de sexo que poderia, por si só, exalar erotismo ao som da sedutora música de Mozart tocada na vitrola, soa (de propósito) artificial. A trilha-sonora de Eiko Ishibashi reproduz a atmosfera de distanciamento, mesmo nas composições mais densas – em que pese a qualidade das músicas e da execução delas – porque busca-se, exatamente, esse objetivo.
Dessa forma, acompanhamos os desencontros do diretor e ator de teatro Yûsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), encantado por clássicos densos da dramaturgia universal. De início, o vemos entregue às vãs expectativas de Vladimir, personagem de “Esperando Godot” (Samuel Beckett, 1906-1989) e, logo, mergulhado nas descrenças delineadas em “Tio Vania”, de Tchekhov (Anton, 1860-1904).
Ele carrega culpa relacionada à mulher Oto (Reika Kirishima), roteirista de TV, que narra as histórias dela, no carro, a caminho dos respectivos trabalhos e o ensinou a ouvir textos gravados enquanto dirige. Foi assim que ele aprendeu decorar textos teatrais.
Um acidente recomenda que ele pare de dirigir. Como é, apenas, recomendação ele continua a manejar o carro até que a produção da peça “Tio Vania” contrata, a contragosto dele, um motorista particular. Quer dizer, uma motorista, a jovem Misaki (Tôko Miura).
Espectadores viciados que somos, pensamos nos conflitos advindos do encontro. Mas o roteiro do diretor (com Haruki Murakami, autor do conto, base da história) passa longe do óbvio: Yûsuke Kafuku terá em Misaki uma companheira de culpa – neste caso, em relação à mãe.
E há o galã de TV Takatsuki (Masaki Okada), que está no elenco da peça; este, sim, culpado de uma morte. Amante de Oto, o sofrimento dele é outro, o que gera constante confronto com o ator/diretor.
São vivas as cores da cinematografia de Hidetoshi Shinomiya, que se aproveita bem da iluminação natural das locações, favorecido pelas inúmeras viagens de carro. Entretanto, o peso da culpa e das dores expostas em gestos, ações e palavras fazem de “Drive My Car” um filme, conceitualmente, cinza.
Tal conceito pertence aos personagens. Eles constroem narrativas nas quais acentuam as respectivas dores e tentam nos arrastar para a desilusão, a falta de sentido na vida e a incapacidade de lidar com a realidade. São assustadores gritos reverberando ao vento no meio da noite.
Sob controle de tudo, Hamaguchi permite aos personagens vagarem por caminhos tortuosos até valer-se de artimanha teatral – afinal, ensaiam uma peça. Da própria peça, ele estabelece o desfecho com a música de Ishibashi, desta vez, em tom de celebração e uma atriz especial, a coreana Yoo-rim Park. Para quem fugiu das comoções o tempo todo, o diretor japonês consegue a proeza de transformar o final em delicada e sutil epifania.
Não convém relatar a cena, mas o grande Tchekhov merece ter parte do longo trecho da personagem Sonia citado. “O que podemos fazer? Nada, além de viver. Viveremos longa sucessão de dias e noites intermináveis suportando provações do destino. Descansaremos. Ouviremos anjos, veremos todo o céu em diamante. Não tiveste alegrias na tua vida, mas espera, tio Vânia. Havemos de ter”.
Quando oferecemos nossa emoção em troca de um texto de tamanha transcendência, mesmo que não tenhamos ou não creiamos na esperança, que, ao menos, estas sejam, sem culpa, palavras que aplaquem nossas dores.
“Drive my Car” está disponível na plataforma Now Claro/Net para aluguel e compra
João Nunes é jornalista e crítico de cinema