O excesso do uso da sépia (desbotado que remete ao passado) e de técnicas similares em filmes de época levou este bom recurso narrativo a perder força. Não há necessidade imperativa de se recorrer a ele para falar de tempos antigos; fosse assim, todos os filmes com essa abordagem teriam de usá-lo.
Por isso, o que se vê, hoje, com raras exceções, é clichê. Está na concepção clichê, escolhida pelo diretor Gustavo Fernandez, o primeiro problema de “Predestinado: Arigó e o Espírito de Dr. Fritz” (Brasil, 2022, drama).
E tal opção contagia outros setores. Logo no início, o protagonista (Danton Mello) realiza cura e a mão cheia de sangue escorrega pela parede. A música que cobre a cena emite o sinal para o que veremos: narrativa desenhada como suspense.
Ocorre que o filme é um drama. E ótimo drama. Arigó é chamado por espírito (ele ouve vozes) denominado Dr. Fritz, que lhe concede o dom de curar enfermos. Ironicamente, não tem poder de cura na própria família nem a si mesmo.
Bastaria este mote para se criar enredo de alto alcance emocional. O princípio lembra a apóstolo Paulo, que também tinha dons, mas foi lhe dado “um espinho na carne”, que ele pediu a Deus para ser extirpado e a resposta foi não.
A contundência é inegável – no seu reverso lembra alguém que, recentemente, disse que não haverá filé para todo mundo e que, se houver, será reservado aos filhos dele. Vê-se que um dom (ou poder, no caso desse “alguém” citado) não é concedido em benefício próprio, mas para o outro, para a comunidade, os que mais necessitam, os que não têm acessos.
Este é o drama humano e as todas as consequências ligadas a ele – tanto que uma das cenas mais comoventes é a frustração de um filho de Arigó que tem problema físico e não obtém a cura.
No entanto, o roteiro de Jacqueline Vargas e a direção de Gustavo Fernandez enxergam esse terrível impasse, apenas, como espalhafatoso e gerador de espanto. Daí, é só um passo para transformá-lo em algo escabroso encenado no modelo over – do inglês, algo demasiado, acima do tom.
E tudo pesa. O bom ator Danton Mello vai por esse caminho, assim como Juliana Paes (a mulher dele), ambos (e o restante do elenco) com interpretações exageradas no modo de dizer as falas, nos gestos eloquentes, nos olhares duros, nos movimentos desmesurados dos corpos.
A trilha sonora de Gus Bernardo acompanha o padrão. Está onipresente e, não só longe de ser coadjuvante, mas de posse do protagonismo. São temas executados no viés do suspense, marcando cada cena, por si só, inapelável (faca no olho, nas costas, no abdômen e, sangue, muito sangue) com grandiloquência.
Gustavo Fernandez, diretor de novelas e séries na TV Globo (um dos diretores do sucesso “Pantanal”), tem no currículo dois trabalhos de enorme qualidade: assistente de direção no inesquecível “Lavoura Arcaica” (Luiz Fernando Carvalho, 1999) e um dos roteiristas do sensível “Anahy de las Misiones” (Sergio Silva, 1997).
São filmes que buscaram a essência. Os grandes temas estão lá e gritam movidos pela força que arrastam os personagens como se estes não tivessem capacidade de decidir os próprios destinos. E, contudo, o modo de tangenciar a tragédia humana é delicado e sutil. Daí o encanto.
Não há como sintonizar-se com a dramática vida de Arigó, homem mobilizado a prestar serviço à comunidade, mas acossado por incompreensões de opositores (o padre católico vivido por Marcos Caruso e o juiz interpretado por Marco Ricca) porque a exacerbação na encenação do drama elimina o que há de mais sofrido no personagem.
Basta observar esta contradição: Arigó, homem da cura, que faz milagres, sara, elimina a doença – em última análise, a luta diária de todos nós.
E não há nenhum momento no qual um curado surge para demonstrar a alegria de voltar a ser saudável. A face oposta do sofrimento, feito de dor e lágrimas, se evidencia na alegria e seus risos e contentamentos.
No final, há alguns esboços de riso, algum sentido de paz. Muito pouco. Tanto o roteiro quanto a direção não podiam abdicar desse elemento primordial em filme no qual a cura é a razão de ser.
Seria só um detalhe, mas a insistência fala pelo todo. Depois da segunda vez em que Arigó corta os olhos de um paciente, não seria mais preciso mostrar cena tão violenta; o espectador já entendeu, mas o diretor insiste. Ao trocar o mais importante, o drama humano pela imagem do espetacular, quase obsceno, ele perde a chance de desvendar uma experiência extraordinária.
João Nunes é jornalista e crítico de cinema
O filme está em cartaz nos cinemas. Em Campinas, pode ser visto no Cinépolis do Galleria Shopping e do Campinas Shopping, Cinemark do Shopping Iguatemi, Kinoplex do Shopping D. Pedro e Moviecon Unimart Shopping e no Shopping Bandeiras