Os pais, bem-intencionados e muito preocupados com os destinos das suas crianças, tentam ensinar que eles sejam pessoas boas, generosas, mas que se resguardem com uma desconfiança básica, indispensável para que não sejam vítimas dos malandros e enganadores. Orientam os filhos para que dosem cada vez mais e melhor a picardia e a ingenuidade.
A criança nasce inocente e seguiria assim enquanto não fosse informada sobre a perniciosidade. Ela permaneceria naturalmente nua, só vestindo agasalhos nos dias frios. A inocência corresponde ao desconhecimento do mal.
Os ensinamentos e as experiências de vida interferem e moldam a inocência que vai se caracterizando como ingenuidade. Surgem os primeiros lances de cinismo, alguma blindagem de suspeita. A ingenuidade é a inocência em amadurecimento.
Essa evolução é naturalmente pessoal. Algumas pessoas muito maduras na idade podem manter uma ingenuidade bem inocente. Outras, precocemente, já se colocam desconfiadas e presumidas.
À medida que se desenvolvem, tornando-se adolescentes e adultos, os filhos teriam que estar bem preparados para balancearem os níveis de malícia e maldade da convivência com os outros, para conseguirem a melhor sequência possível na vida.
Essencialmente, para favorecer esse bom desenvolvimento, tentemos comparar e diferenciar maldade e malícia.
A maldade teria uma inspiração maligna, chegando a atos abusivos, violentos, manipuladores, favorecendo traições e explorações de egoísmo cruel. É onde se contempla a perversão. De certo modo, o perverso é involuído, infantil, pois brinca com a vida dos outros.
A malícia teria uma motivação capciosa, aproveitando as circunstâncias com oportunismo, trapaças, envolvendo as pessoas em mentiras, fofocas, muitas vezes com ironia pesada e sarcasmo. É onde se contempla a astúcia.
Entretanto, sabemos que um mínimo funcional de malícia é necessário para a sobrevivência e a qualificação da vida. A pessoa tem que aprender a negociar, trocar com boa margem de participação, interagir com destreza e inteligência.
Teríamos, então, a “malícia útil”. Essa “malícia útil” implica uma sutileza exponencial, pois a pessoa tem que equilibrar a pureza de espírito, a lealdade e a franqueza com algum traço de insensibilidade, logro e proveito egoísta. Eventual e paulatinamente, deve adaptar-se à transição entre a falta e a prática de atuar com segundas intenções.
Ao longo dessas experiências, na universidade da vida, conforme seus próprios temperamentos, perfis e os ambientes, as pessoas vão se revelando em atuações mais ou menos maliciosas e maldosas. Vão aparecendo os espertos e os safados.
No extremo mais humano, com grande recheio ético e altruísta, teremos aquelas de hábito amoroso, boa-fé e compaixão. No polo mais desumano, as que se regrarão por atos de má-fé, malignidade, desdém e impiedade.
De um modo geral, pelo menos no plano teórico, os raciocínios filosóficos, os apelos religiosos, manifestações artísticas e os discursos políticos demandam a necessidade indispensável de exercermos e aprimorarmos a malícia útil. No entanto, essas iniciativas permanecem em nível retórico, não se expandem na efetividade. Continuamos admirando contraditoriamente figuras que dão exemplos perversos.
O historiador Leandro Karnal aponta que a admiração por certas personalidades históricas é estranha.
Da França, vem Napoleão Bonaparte, que terminou a vida longe do filho e sem acesso ao universo que construiu. De Portugal, vem D. João VI, que morreu imperador de dois países, garantindo os tronos do Brasil para o filho, bem como o de Portugal, para a neta.
Eis que Bonaparte é cultuado como vitorioso e João VI como fracassado…
Essa incongruência é assustadora, pois os safados podem ser exemplos reverenciados e imitados, como se não bastasse o desempenho de espertos.
Em especial, na complexa área da Política, todo critério é crítico, pois parece que a safadeza progride voraz e rapidamente, defendendo-se com absurdos privilégios e impunidade, o que vale como uma verdadeira, maldita e lamentável pós-graduação…
Joaquim Z. Motta é psiquiatra, sexólogo e escritor.