“A esperança tem duas filhas diletas: a indignação e a coragem.”
(Santo Agostinho).
É tempo de refletir sobre qual será a dose de indignação e coragem que Leão XIV usará na construção de seu pensamento. Muitos católicos se perguntam o que esperar da complexa rede de subjetividades que se forma na mente de Sua Santidade. Estaria ela inclinada a produzir reflexões mais progressistas ou, ao contrário, mais conservadoras — ainda que estas surjam com cautela, em pequenas porções, para não assustar o eleitorado recém-conquistado? Depois da sua recente estreia político-espiritual e da “fase da conquista”, Leão XIV continuará o mesmo ou, finalmente, rugirá em sermões estrondosos, marcados pelo desejo de resgatar a tradição católica apostólica romana? Dúvidas e ideias mundanas, à lá Brás Cubas, se penduram e dão cambalhotas nos “trapézios” das cabeças cristãs.
Se o pensamento é o fio que Deus nos deu para nos comunicarmos com Ele, como escreveu Honoré de Balzac, suponho não ser preciso invadir o arquivo secreto do Vaticano para esclarecer tais questões. A chave pode estar numa atenciosa investigação sobre os títulos e autores dos livros de cabeceira de Robert Francis Prevost ao longo dos seus 69 anos de vida.
Entre os antecessores de Leão XIV, biógrafos revelaram os principais escritores que já passaram pelas pontifícias mãos: Francisco era fã, sobretudo, de Jorge Luis Borges e Dostoiévski, mas também apreciava Dante, Proust, T. S. Eliot e C. S. Lewis; Bento XVI preferia os autores religiosos, como Frei Gregório de Rimini e São Tomás de Aquino; em meados do século XX, Pio XII dizia que os bons livros “eram os melhores amigos de um homem”. Na lista dos seus escolhidos estavam as obras de Cícero e de Alessandro Manzoni.
Seja qual for a preferência literária de cada Papa, a Biblioteca Apostólica do Vaticano, fundada por Nicolau V (1447-1455), dispõe de um acervo com 1,6 milhão de livros impressos.
No entanto, a formação intelectual de um Sumo Pontífice começa muito antes dele ser eleito no Conclave. Sabemos que Leão XIV é filho de uma bibliotecária: a americana de descendência espanhola Mildred Agnes Martínez, chamada, carinhosamente, de Millie. Formada em Biblioteconomia pela Universidade DePaul, Mildred concluiu também um mestrado em Educação. Ter uma mãe responsável por uma grande coleção de livros pode ter feito toda a diferença no conhecimento literário do, então, pequeno Robert Prevost. Um sinal inconteste de que Leão XIV foi apresentado ao hábito da leitura ainda na infância e dentro de casa.
Na plêiade do novo Papa, é provável que conste o nome do autor do romance A Festa do Bode, Mario Vargas Llosa. Leão XIV tem cidadania peruana e construiu grande parte da sua carreira sacerdotal no Peru. Certeza mesmo, por enquanto, só a presença de Aurélio Agostinho de Hipona, mais conhecido como Santo Agostinho (354 d.C. — 430 d.C.).
Teólogo cristão considerado gênio por Harold Bloom, é admirado e estudado à exaustão por filósofos, religiosos e estudiosos da história do pensamento. Nos últimos dias, devido ao sucesso do seu discípulo mais popular, Santo Agostinho extrapolou os muros dos mosteiros, das bibliotecas e das universidades para brilhar na TV, nos jornais e nas conversas de quem, até então, nunca tinha ouvido falar dele. O Papa faz parte da ordem religiosa agostiniana — da qual se tornou líder como superior global: “Sou um filho de Santo Agostinho, um agostiniano”, disse Leão XIV ao se apresentar ao mundo, da sacada da Basílica de São Pedro.
Entre as obras de Santo Agostinho, Confissões é uma das mais lidas e estudadas. É considerada a primeira autobiografia da literatura ocidental. E, obviamente, teve e terá um lugar especial na cabeceira de todo adepto de sua doutrina, como é o caso de Leão XIV. O texto contém tratados sobre a memória, o tempo, a verdadeira felicidade; também lembra as autoridades católicas que, por mais poderes que possam ter, sempre serão vulneráveis aos desejos e sentimentos humanos.
Santo Agostinho tinha mais de 40 anos, já era bispo de Hipona (na atual Argélia), quando escreveu as primeiras páginas da narrativa. Segundo Frei Betto, o religioso medieval “se despe aos nossos olhos”, expõe as suas fraquezas, defeitos e pecados; confessa a inveja que sentiu de um mendigo bêbado que cantava nas ruas de Milão e revela um relacionamento amoroso que viveu por longos anos: “Amarrado à doença da carne por uma atração mortífera […] de maneira alguma eu poderia suportar uma vida de celibatário”.
Temas complexos iluminados por um dos pensadores mais importantes do Cristianismo.
Se Leão XIV pensa em se inspirar e usar as ideias agostinianas como farol em seu pontificado, o rebanho católico pode se preocupar com uma pergunta que não quer calar: será que o primeiro Papa da Ordem de Santo Agostinho, muito antes de usar o Anel do Pescador, teria sido tomado pela coragem de seu mestre, o imitado e já escrito as suas próprias confissões? E agora o que fazer com elas? Estas possíveis respostas, sim, poderão se tornar o mais novo segredo guardado a sete chaves no arquivo secreto do Vaticano.
Lucius de Mello é doutor em Letras pela USP e Sorbonne Université-Paris. Autor da tese A Bíblia segundo Balzac: Deus, o Diabo e os heróis bíblicos em A Comédia Humana. Jornalista, escritor e finalista do Prêmio Jabuti em 2003.