Eles perambulam pelas grandes cidades. São vistos em caminhada sem rumo pelas estradas. Cruzam nossos caminhos. Nós os vemos, mas não os enxergamos ou agimos como se não os quiséssemos enxergar. Eles nos chamam e nós nãos os escutamos ou fingimos que não escutamos. O frenesi que move a “cultura do consumo” não nos permite perceber o quanto estamos sendo engolidos nessa sedução dos gananciosos detentores do poder econômico e politico.
Farrapos humanos, uma classe de indivíduos que representam o fruto da desigualdade social: de um lado, os afortunados que vivem no acúmulo de bens e desfrutam do sucesso material, um mundo à parte constituído de grupos políticos, de empresários e oligarquias poderosas que exploram a mão de obra dos mais pobres… Do outro, lado esse cenário de privação, de dor…
O profeta Isaías em seu livro, no capitulo 53, traz diante de nossos olhos esses cidadãos que vivem vagando. São seres humanos tão desfigurados, tão irreconhecíveis, desprovidos de qualquer beleza que possa atrair os nossos olhares.
Desprezados, são como a escória da humanidade, cheios de dores e sofrimentos. Vivem (sobrevivem?) como amaldiçoados, loucos, sem lenço e sem documento, varridos como folhas de papel ao vento.
São homens, mulheres, jovens, crianças e idosos que sobrevivem em situação de rua. Vagueiam perdidos, falam sozinhos, gritam, riem ruidosamente, choram… Em sua maioria se postam deitados ou encostados nos cantos mal iluminados das cidades, consumidos pelos estragos que as drogas, o álcool, os vícios ou doenças lhes causaram, e que se refletem na perda dos neurônios, do raciocínio, na perda irremediável do sentido da vida.
Procuram desesperadamente encontrar um paliativo que satisfaça os seus instintos vorazes de dependência químicas e outros vícios. Gritam, dançam, choram, pulam, xingam, se agridem, fazem suas necessidades fisiológicas em qualquer lugar… Muitos deles adormecem sob o efeito de alguma substância que os leve a morte, dando um fim a esse drama, que se chama “a realidade da vida”.
A rua para muitos é um encontro com os seus demônios que os amedrontam e os mergulham no lamaçal dos remorsos e culpas. O preço a pagar é altíssimo para aplacar a fúria da autocondenação frente aos delitos que praticaram.
Possuem na alma um arquivo vivo de lembranças e memórias que atormentam o seu presente e os levam sempre ao confronto com o passado. Vivem alucinações entre o que fizeram e o que fizeram com eles: são lembranças de uma infância sofrida, o presenciar da violência doméstica, o abandono dos pais, os abusos sexuais, os maus tratos… Sentem o amargo gosto das promessas não cumpridas, das mentiras e trapaças e dos sonhos que nunca se realizaram…
No filme O Homem Elefante, (o personagem tem uma deformação no nariz à semelhança de uma tromba de elefante), há uma cena impressionante: abandonado por seus pais, ele, quando jovem, é adotado pelo dono de um circo e passa a ser a principal atração. Um dia, foge do circo e sai correndo pelas ruas e o povo quando percebe passa a persegui-lo. Ele entra numa estação de metrô, desce as escadarias e de repente se vê encurralado, sem saída.
Para, assustado, diante dos olhares vorazes da multidão. Grita com lágrimas nos olhos: “Eu não sou um monstro, eu sou um ser humano”.
Assim acontece com esses farrapos humanos, tantos que vemos por aí… Eles clamam por dignidade e respeito: “Nós não somos bichos. Olhem para as nossas chagas e sintam o cheiro que exala de nossos corpos. É o odor que reflete a podridão de uma sociedade marcada pela indiferença, pelo individualismo, a ganância do lucro e a discriminação que nos crucificam e nos culpam por estarmos nos seus caminhos e sermos vistos através dos vidros coloridos de seus carros”.
Esta reflexão pretende ser um exame de consciência para despertar-nos do nosso imobilismo, de nosso comodismo na zona de conforto.
Que nos leve a valorizar e considerar que esses seres humanos fazem parte de um “todo” social do qual nós fazemos parte e nos torna responsáveis uns pelos outros.
Essa chaga que sangra no tecido social em que vivemos e escorre pelas nossas grandes cidades clama por uma urgente mudança desse estado de coisas: a adoção de soluções inteligentes e políticas públicas integrativas, para o resgate da dignidade da pessoa humana e, assim, sua ressocialização na família e na sociedade.
Pe. Luiz Roberto Teixeira Di Lascio é Vigário Paroquial da Basílica Nossa Senhora do Carmo, Arquidiocese de Campinas – e-mail : padredilascio@uol.com.br