Havia acabado de receber um envelope lacrado do laboratório. Exame clínico, realizado dias atrás, sugestivo de severas complicações hepáticas. Daí que o médico lhe pediu os complementares.
Entre um passo e outro, lembrou-se que o primeiro gole de bebida veio aos quatorze e daí não parou mais. Em flashes lhe vinham a propaganda, com jogadores de futebol, cantores e artistas. Apoiou-se na parede, suor banhando a camisa.
Queria somente chegar em casa e chorar – sem que ninguém ouvisse. Aliás, poderia derramar suas lágrimas ali mesmo na rua indiferente. Seriam invisíveis. Era Natal.
Já fazia alguns anos, na empresa na qual trabalhava, seus superiores e uma equipe da Saúde, mostraram-lhe uma folha com dez questões bem simples de serem resolvidas. Explicaram que se tratava do teste AUDIT (Alcohol Use Disorder Identification Test/Teste de Identificação dos Transtornos relacionados ao Consumo de Álcool), da Organização Mundial de Saúde (OMS) *.
Pedia-se a autoavaliação sincera acerca do seu consumo de bebida alcoólica. Só queriam conscientizá-lo que o álcool é droga! E se houvesse qualquer problema em seus domínios pessoais, familiares, sociais ou no trabalho, poderiam ajudá-lo.
Claro que o apelo da propaganda, dos círculos de amigos – só conseguiam conversar com as almas acorrentadas a garrafas e copos – do preço baixo da cerveja, da facilidade de comprar em cada esquina, fez com que o AUDIT ficasse na estante da casa, mofando e empoeirando.
Sua filha, curiosa e inteligente, aquela que sempre vinha com um sorriso pedindo atenção e brincadeiras, queria saber o que era o AUDIT. Limitou-se a responder, no seu mau humor costumeiro: “isso não é coisa de criança”.
Sua mulher baixou os olhos. Era o silêncio diário antes de sua ida ao bar. Silêncio que seria rompido horas depois com gritos, agressões, a louça se estilhaçando no chão, a cabeça escondida no cobertor, olhos cerrados com força, o corpo tremendo agarrado a um bichinho de pelúcia, a lágrima inaudita. E no dia seguinte, mesmo de ressaca, seguia ao trabalho.
Dessa vez, o silêncio era só dele. Sua mulher e filha haviam ido a uma celebração natalina. Uma dor profunda no peito parece que queria perfurá-lo de dentro para fora. Deixou o envelope com o resultado do exame laboratorial sobre a mesa. A “coragem” que o álcool lhe dava já não era a mesma – ainda que que ingerisse cada vez mais doses, o que vinha de volta era ansiedade, pânico e delírios.
Suas mãos trêmulas esbarraram na estante e deixaram cair um papel amarelecido no chão. Não soube por que, mas resolveu abaixar-se com muita dificuldade e pegá-lo. Era o teste AUDIT. Preencheu-o em minutos – crendo que eram os últimos minutos que teria (como lhe haviam dito, não era difícil preenchê-lo). Fez um inventário de sua existência.
Reconheceu-se gente – e que gente precisa de gente para tudo! Teve um fôlego de vida – pois a Vida surpreende. Mas faltava coragem para abrir o temível envelope. Não se deu conta que as horas passaram. Abriu com o cuidado que nunca tivera antes. Abriu-se também a porta. Sua filha e sua mulher voltavam cantando. O canto era permitido somente quando ele não estivesse em casa. Gelaram. Ele devolveu com um sorriso sóbrio. Deu-se conta que passara aquele dia todo sem ingerir álcool. Determinado a abraçá-las, pediu-lhes perdão.
Resultado do exame: positivo para a vida!
Guilherme A. R. Franco é promotor de Justiça em Campinas/Especialista em Dependência Química
(*) O AUDIT foi desenvolvido pela Organização Mundial de Saúde como um método simples e eficaz de investigação do uso excessivo do álcool. Compõe-se de dez questões. A pontuação final indica desde o consumo de baixo risco a provável dependência. Se necessário, procure ajuda especializada. https://sites.usp.br/acolhe/avalie-seu-consumo/questionario-audit/