“Filhinho, já estamos em outubro! Está na hora de procurar o cabrito para a ceia do Natal. Um cabritiii…nho, hein! No ano passado tive de lutar com a carne dura de um bode!”
E assim acontecia todos os anos. Um mês e meio antes das festas natalinas meu pai começava a percorrer os sítios e a inquirir amigos à procura do “cappreto” para que, assado ao forno, fosse servido como prato principal no Natal, seguindo a tradição da família de minha mãe. Sempre penso que meu pai preferisse uma leitoa com tutu, couve refogada e arroz branco para a data festiva. Entretanto, o apreço que tinha por meu avô do Vêneto fazia-o declinar, se bem que temporariamente, dos sabores da culinária mineira com que fora criado.
E a azáfama começava!
Era a carta para os tios de São Paulo, perguntando quantos viriam passar o fim do ano em nossa casa. O cabrito todo daria ou seriam necessários mais dois “quartinhos” de outro?! Se assim fosse, deveria ser da parte traseira!
Era o bilhete, mandado através do chefe da estação ferroviária à Dindinha, consultando quando ela viria da fazenda para a cidade, a fim de temperar o cabrito, pois a especialista no assunto era minha tia-avó.
Eram as longas conversas com as primas e amigas, nas modorrentas tardes de domingo da pequena Altinópolis, sobre as providências tomadas, as dificuldades havidas e a esperança de dias alegres.
Chegava, finalmente, o dia em que o cabrito vinha para nossa casa e que, amarrado ao pé da jabuticabeira ou no cano que levava água para o tanque, esperava seu triste fim. Nós, crianças, com os vizinhos amigos adorávamos vê-lo berrando e saltitando quando lhe dávamos folhas de goiabeira para comer ou o provocávamos com uma vara.
Sua sina, num futuro próximo, não nos tirava o prazer de observar e brincar com algo tão vivo e gracioso perto de nós.
E os dias iam passando… Meu avô fazia aceiros ao redor dos muitos pés de jabuticaba de nosso quintal para reter a água que corria o dia inteiro, de modo a permitir a chegada de frutos grandes e saborosos. E quando estes chegavam negros e suculentos, pontilhando os galhos das frondosas jabuticabeiras, ele reservava uma das árvores, a mais bonita, para seus filhos que chegariam em breve da Capital. O italiano de comedidas falas amorosas sabia, com seus gestos, comunicar afeto e carinho!
“A Dindinha chegou, Filhinho, e avisou que na 6ª. feira de manhã virá preparar o cabrito! Quando irá matá-lo?”
Triste dia! A morte do animalzinho pequeno e desprotegido era o fim de nossa alegria despreocupada. Quanta ingenuidade e doçura naquele momento em que aprendíamos que a vida é luta permanente pela sobrevivência de uns em detrimento de outros, tanto entre animais quanto entre humanos. (Haverá algum dia chance de sobrevivermos todos, com dignidade, sem o sacrifício de muitos por poucos?)
Dindinha tal qual um “chef” atuando sob a admiração da plateia, permitia que lhe pusessem o avental limpo e engomado, enquanto estendia os braços em frente à mesa de granito onde, numa enorme bacia, jazia nosso amigo brincalhão já dividido em partes e sem a “glândula do cheiro”, extraída sob a axila.
“A faca e o toucinho! É de barriga?…Pique, por favor! … A cebola está pronta? E o alho? O cheiro-verde tem de ser bem miuuu…dinho! A quantidade do sal é a alma do tempero! O vinho pode ser o branco! Água!”
E assim ia pontificando minha tia-avó enquanto preparava a vinha d’alho, com sua gorda mão de unhas curtas, onde o cabrito recheado com toucinho – “para amaciar a carne”, deveria permanecer por umas 12 horas, “descansando”. Os olhares atentos e extasiados de minha mãe e de sua ajudante de cozinha, a postos para fornecerem prontamente os ingredientes requisitados, traduziam o respeito e a admiração dos jovens diante da experiência dos mais velhos. Vez por outra, meu avô, meu pai e eu acompanhávamos parte da delicada operação.
Os anos foram passando, deixei a cidade para estudar em outras plagas e não mais acompanhei os preparativos para o Natal familiar, embora chegasse sempre a tempo de saborear o cabrito especial e o tradicional sfogliatella.
Percebi, mais tarde, que o preparo do cabrito no Natal sempre fora um ritual, um acontecimento social bem estruturado capaz de estreitar laços no interior da casa, da família extensa e entre amigos.
Há que se valorizar, cada vez mais, os rituais criados em sociedade para que não se perca o essencial da vida: a convivência com os que nos criaram e amamos, a conquista respeitosa dos companheiros de caminhada e a manutenção dos sonhos que gestam futuros.
Regina Márcia é antropóloga, professora universitária aposentada, membro da Academia Campinense de Letras