Temos vivido na Terra, fomos presencialmente à Lua (na época, não se dispunha de visitas online…), especulamos sobre vida em outros planetas e locais, conseguimos ampliar diariamente nosso conhecimento sobre o universo. E chegou o metaverso…
Voamos com a astronomia, surpreendemo-nos com o macrocosmo, bem como nos impacta o microcosmo, especialmente os mergulhos nanométricos.
Há tanto a descobrir, quanto mais aumentamos as dimensões e quanto mais as minimizamos!
Essas iluminações, esses estudos cada vez mais profundos, vão clareando dúvidas, mostrando a realidade, atualizando a ciência. Cabe-nos acompanhar e nos adaptar.
Karl Marx alertou: “Há pessoas que não levam em conta a realidade, mas, em compensação, a realidade também não as leva em conta”.
Tudo segue com racionalidade acomodada, aceitação confortável, mesmo que alguns grandes sustos possam abalar nossa segurança. Uma inundação extensa, um furacão e um terremoto são catástrofes naturais – tendemos a nos conformar com isso.
Grande estragos provocados por nós mesmos, as guerras, os crimes, negociações corruptas e outras estultices poderiam ser evitados, mas não evoluímos suficientemente para controlar essas loucuras.
Podemos disputar esportivamente e ganhar uma medalha olímpica, com toda a nobreza de espírito de um Barão de Coubertin. Ou também conseguir um pódio por doping…
Compartilhamos valores admiráveis e falhas imperdoáveis.
Quanto mais aproveitarmos a ciência, renovando os padrões éticos, enganando-nos pouco, criticando-nos frequentemente, melhor fruiremos da vida e morreremos de modo menos sofrido.
O drama é que temos nos defendido com miragens e devaneios, muitas vezes preferindo o sossego dessas utopias e quimeras.
A mais complexa e difícil dessas ilusões é a fé na Providência Divina.
Se alguém levantar questões sobre a existência de Deus na Internet, dialogando com a Inteligência Artificial, receberá comentários incompletos, sem compromissos. Obtive esta resposta: “A questão da existência de Deus é uma das mais antigas e complexas da humanidade, e não existe uma resposta única ou definitiva que satisfaça a todos”.
Em um grupo de debates filosófico-literários, toda vez que se abordava uma dúvida religiosa, alguns participantes pediam para mudar o foco. Uma pessoa dizia que preferia pular esses assuntos, pois não queria ser confundida com uma criança, daquelas que acreditam em fadas e Papai Noel.
Alguns ateístas militantes são agudos e truculentos nas suas matérias, como Michel Onfray e Richard Dawkins. Eles criticam bastante os crentes; por vezes, ridicularizam-nos. Christopher Hitchens é outro autor áspero com os crentes. Ele entende que não basta ser ateu. Considera-se “antiteísta”, pois não correria o risco de ser como uma pessoa ateia que poderia desejar que a “crença em Deus fosse correta”.
André Comte-Sponville é mais moderado e flexível. Comenta os equívocos dos crentes sem pressões radicais. E procura mostrar como funciona a alma do ateu. Seu livro “O Espírito do Ateísmo” é uma boa lição desse entrosamento dos aspectos espirituais e racionais.
Leon Festinger, na metade do século passado, criou o conceito “dissonância cognitiva”, equivalente a vivenciarmos uma experiência incômoda diante de informações que contradizem nossas crenças.
Charge de Daniel Paz é ilustrativa. Pai e filha diante da tela. Ela: “Então, papai, é mesmo uma falsa notícia”. Ele: “mas, filha, como? Não pode! Essa notícia diz o que eu penso”…
Ler os combatentes da religião é muito bom, desde que as dissonâncias sejam bem administradas. O dissonante vai lidar com seu conflito de diferentes formas, indo à dissidência ou mantendo-se conservador.
Há duas possibilidades para quem aceita questionar as crenças como boa experiência. Primeira: reciclagem de dogmas e doutrinações, seguir crentes, resilientes, mas em esquema revisado. Segunda: tentar mesmo revisões mais críticas, parando com a crença.
Para os que fogem dos questionamentos ou entram em grandes conflitos diante deles, teremos também duas vias. Primeira: negar peremptoriamente qualquer dúvida, garantir-se com fé radical, extremista e fanática. Segunda: entrar em onda de blasfêmias, insultando e difamando as divindades antes tão dignas de adoração.
A religião é um refúgio protetor, um consolo. Chega até a exercer boas influências sobre nosso corpo, nossa saúde. Estudos recentes debatem procedimentos cirúrgicos que são beneficiados pelas orações.
Então, para que criar dúvidas? Nossa evolução se dá por crises, pelos abalos que provocam uma criança na sequência para a etapa adulta e os próximos amadurecimentos.
Intelectualmente, também precisamos de conhecimentos que nos impactem, que nos tirem da zona de conforto. Talvez seja o momento de um tsunami no Paraíso.
Ainda não temos a oportunidade humana de ter uma vida sem religião. Não há, por enquanto, condição de avaliarmos o que seria melhor: viver com ou sem uma crença religiosa?
O sismo celestial seria a possibilidade prática dessa experiência. E teria que durar pelo menos meio milênio…
Joaquim Z. Motta é psiquiatra, sexólogo e escritor.