O nosso idioma reserva algumas palavras raramente usadas, mas algumas delas são extremamente significativas.
A palavra “enargia” é dificilmente encontrada, chega muitas vezes a ter sua grafia corrigida, como sendo equívoco de quem pretendia escrever “energia”. Em inglês, a confusão é menor. Energia é “energy”; “enargia” é “enargia” mesmo.
Abrimos este debate inspirados no fato de que a “enargia” tem uma fantástica “energia” intrínseca ao seu conteúdo, aproveitada pela religião.
O norte-americano Richard A. Lanham, professor de Retórica na Califórnia, argumenta que, embora energia seja um termo geral para vigor e verve, enargia é um termo mais específico para demonstrações potentes ou imagens vívidas.
O relato de Tucídides, historiador e militar da Antiga Grécia, sobre a peste de Atenas, é a ilustração clássica de enargia. Ele usa linguagem sensorial vívida e detalhada para descrever o evento, criando impressão marcante no leitor.
O humanista holandês Erasmo de Roterdã serviu-se da enargia para enriquecer seu estilo e linguagem. Ele ensinava aos estudantes como empregar a enargia para que a prosa e a oratória se tornassem mais vívidas e persuasivas, por meio de ênfase nos detalhes.
Portanto, enargia é um termo da Retórica, uma capacidade de descrição muito competente, que evoca uma imagem tão expressiva na mente do leitor que ele se sente testemunhando o evento. É qualidade da expressão do emissor, mas a sua concretização e sucesso dependem da resposta psicológica do receptor.
A enargia clássica é literária. Qualquer boa leitura exige dedicação, concentração mental. Quando complicada pela intenção mais expressiva, a enargia exige um super esforço da mente.
O leitor precisa usar memória, imaginação e análise para converter as palavras abstratas em imagens sensoriais vívidas e sentir a emoção “presencialmente”. Portanto, é um exercício cognitivo excelente, que demanda ginástica de várias áreas do cérebro.
Os gregos antigos estão sempre nos levando a reciclagens filosóficas e calistênicas. Criaram atividades de proteção e tratamentos cerebrais muitíssimo antes das descobertas de Aloysius Alzheimer… Este momento coevo implica modernizações e atualizações rápidas e constantes. Temos, então, a enargia visual.
Estamos muito acostumados às telas, que estão em todas as partes e situações. Temos as pessoais: celulares, tablets e computadores; as públicas, tais como painéis em aeroportos e totens interativos de shoppings; e as domésticas: smart TVs e monitores de videogame.
Já contamos, nessa nossa contemporaneidade, com um novo tipo de transtorno emocional: a nomofobia (medo de ficar sem o celular). Também observamos a “Screen Addiction”, necessidade constante e tóxica de telas.
No maior esforço literário ou na facilidade visual, a enargia é fenômeno muito influente. No entanto, mesmo com toda essa potência, não tem sido aproveitada em profundidade saudável e lírica.
Sendo técnica retórica capaz de forte persuasão, infelizmente pode ser manipulada com cinismo e esperteza maliciosa, em especial na publicidade e propaganda. Na política, então, pode induzir que demônios são santos…
Na religião, nosso foco principal, pode ser mesmo decisiva e categórica. Afinal, os crentes precisam reforçar constantemente sua fé. Técnicas de retórica, especialmente a enargia, facilitariam a demanda.
No entanto, a tendência é ambivalente. Histórica e filosoficamente, a religião trabalha com muita retórica, mas ela precisa de uma persuasão extrapolada, visando a certeza absoluta e a rendição da vontade.
A retórica persuasiva serve à religião, mas fica entre dois extremos inconvenientes: pode ser apontada como insuficiente, de um lado, e perigosa, suspeita, de outro.
Também há o risco de profanação. Ao tornar o sagrado muito presente e vívido (máxima enargia), há o risco de vulgarizá-lo em profano ou mundano.
De qualquer maneira, o crente somente se sustenta com a fé. Por isso, recursos enárgicos são essenciais, apesar das manobras e contradições.
Talvez a maior contradição seja: a fé é um mistério que exige certeza… O mistério deve prosseguir, mas a crença deve ser uma aceitação inquestionável da verdade revelada. Ou seja, a revelação se mantém pelo segredo…
Para a religião, a retórica é ponte para a fé, mas a fé é a certeza que dispensa a continuidade da retórica!
A Bíblia, que é uma produção enárgica, funciona como narrativa persuasiva, mergulhando o crente na história para o tornar um participante, não um crítico. Portanto, a Bíblia é um exemplo de enargia máxima porque sua técnica narrativa é soberba, seu impacto existencial é envolvente, e a crença faz com que sua representação seja aceita como a própria realidade.
A religião usa a potência da enargia não para argumentar sobre a existência de Deus, mas para iluminar e tornar presente a referência divina.
Assim, é necessário manter um elemento de mistério e transcendência além da compreensão humana. Se a retórica se tornasse exponencial demais, ela explicaria acima do conveniente, destruindo o mistério e reduzindo Deus a uma construção lógica ou literária.
O paradoxo se resumiria assim: evitar a retórica para ficar mais convincente seria uma enargia contraditória…
A iniciativa de evitar a retórica com o objetivo de aumentar a convicção é, em si mesma, uma estratégia retórica de altíssimo nível, o que representa uma verdadeira contradição enárgica.
A linguagem mais utilizada pela religião é a de humildade e sinceridade. Fugindo de artifícios, o emissor parece mais autêntico e desinteressado, o que, ironicamente, o torna mais persuasivo para o receptor.
Essa aparente falta de esforço retórico cria uma enargia de “verdade pura”. O público pensa: “Se dispensa argumentos complicados, o que diz deve ser uma verdade mais simples e irrefutável”.
A negação da retórica torna-se a retórica mais eficaz… Essa “enargia contraditória” — rejeitar a retórica para ganhar autenticidade e, assim, aumentar a persuasão — pode ser interpretada como algo ruim, com intenção manipuladora.
Então, a religião, embora use técnicas enárgicas, não as alardeia. Seu eco é a “verdade revelada”, e a enargia é apenas um meio “secreto” poderoso de assegurar a fé como algo tangível e aceitável para o crente.
Ao oferecer o conforto e a solução para a angústia existencial, a fé religiosa se torna a “mentira mais bela” (no sentido de Debussy). Portanto, apesar das contradições, representa o mais profundo e intenso exemplo de enargia bem-sucedida…
O compositor francês Claude Debussy sugeriu que o ideal da arte é criar uma ilusão, uma sugestão ou um sonho que seja mais valioso e esteticamente agradável do que a representação direta da realidade!
Joaquim Z. Motta é psiquiatra, sexólogo e escritor











