A inserção de corpos diferentes em espaços culturais brotou com força quando a bailarina Keyla Ferrari Lopes, de 49 anos, redescobriu a dança como terapia da alma para seu tratamento de câncer da mama. Ela foi diagnosticada por duas vezes com a doença e hoje celebra seis meses em remissão das metástases. Quando abraçou a dança para si mesma, com seu corpo diferente, mais velho e com os efeitos da quimioterapia, deixou de apenas reabilitar seus alunos com deficiência e passou a dançar também para ser feliz.
Diretora da Cia de Dança Humaniza, que ensina gratuitamente bailarinos com e sem deficiência em Campinas, Keyla chamou a atenção de órgãos governamentais, como a Secretaria Estadual da Pessoa com Deficiência, o que rendeu à Cia a indicação ao Prêmio Ações Inclusivas para Pessoas com Deficiência em 2018.
Esse projeto desenvolvido por Keyla acontece no CIS Guanabara, com apoio da Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que cede o espaço.
A bailarina é graduada em Pedagogia com especialização em Libras, tem mestrado e doutorado em atividade física adaptada pela Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp e atua como docente e palestrante na área da educação especial e dança inclusiva com jovens e adultos com deficiência. É autora de seis livros infantis e três acadêmicos sobre dança inclusiva, além de ter artigos publicados em revistas cientificas.
Neste sábado (14), às 18h30, no CIS Guanabara (antiga Estação Ferroviária do bairro Guanabara), os alunos com e sem deficiência se reunirão para a confraternização de final de ano.
Na ocasião, os dançarinos farão uma apresentação/ensaio aberto para o público presente.
As aulas de dança integram pais e filhos, com deficiência ou não. O grupo conta hoje com 25 integrantes, entre mães, pessoas com deficiência e portadores da Síndrome de Down.
Ponte para o diálogo e inspiração
“Procuro produzir uma mudança cultural na forma como o público enxerga meus alunos deficientes e encara a arte e a deficiência”, explica Keyla.
“A dança é democrática e inclui a todos, faltando apenas as pessoas tirarem as vendas dos olhos para promover o fim do preconceito e da discriminação.”
Sua abordagem pedagógica inclui rodas de conversa e a leitura de poesias que inspiram as coreografias, oferecendo um ambiente onde a arte se torna uma ponte para o diálogo e a conexão entre diferentes mundos sensoriais, intelectuais e motores.

Parte de sua metodologia pode ser conferida no livro “Dance com ele”, de sua autoria, publicado pela editora Abarros, com prefácio de Carlinhos de Jesus. “A dança é uma linguagem universal que, aliada à Libras, amplia as possibilidades de comunicação para surdos, ouvintes e todas as pessoas independente de sua condição motora sensorial ou intelectual, promovendo a verdadeira inclusão”, explica.
Keyla se inspirou a ser professora ao assistir, com sete anos de idade, a novela “Sol de Verão” da rede Globo em que o ator Tony Ramos interpretava um surdo e Irene Ravache sua professora.
“Foi aí que quis ajudar pessoas com alguma limitação”, revela.
Uma viagem a Londres em 1992 fez Keyla encontrar uma bailarina em cadeira de rodas e, ao retornar para o Brasil, enquanto lecionava dança para crianças, acolheu seu primeiro aluno surdo, que trouxe sua irmã que era cega. Então, lembrou-se da novela e não mais parou.
Consciência corporal
Cega ao nascer devido a uma retinopatia da prematuridade (ROP), doença que se desenvolve nos olhos de recém-nascidos prematuros, Gisele do Nascimento Pacheco, de 42 anos, conheceu este ano o projeto da Keyla por meio de um convite da Associação Hortolandense dos Deficientes Visuais. “Fiquei encantada e logo quis participar das aulas na Secretaria de Cultura de Hortolândia, sendo que já me apresentei ao público.”

Atleta da natação pela Associação Paralímpica de Campinas (APC), sendo considerada uma das quatro melhores do país até 2022, quando sofreu uma trombose venosa cerebral (TVC), doença causada pela formação de coágulos ou trombos nas veias do cérebro, Gisele diz que já recuperou 99% de seus movimentos.
“Essas aulas de dança me trouxeram uma consciência corporal muito grande e a Keyla consegue nos orientar. Sem ela, não me arriscaria dançar.”
Para Iaci Pereira Porto, de 68 anos, a dança trouxe mais alegria e interação social para seu filho Rafael, de 28 anos, que tem síndrome de Down. Há oito anos, Rafael, que trabalha meio período na separação de peças em uma empresa familiar de confecção de bijuterias, faz as aulas de dança com a Keyla no Centro Cultural CIS Guanabara.
“Ele adora música, tanto que já fez aulas de teclado e de bateria, e aliou esse amor à dança também”, conta Iaci. Seu amor ao movimento corporal é dividido com sua paixão pela fotografia, que começou aos sete anos. “Com a dança, Rafael fez novas amizades e a aulas servem como uma terapia.”











