A tão temida possibilidade de uma nova crise hídrica já é uma realidade no País, e se for tão severa quanto a última – vivida nos anos de 2013 a 2015 – deve afetar ainda mais a recuperação da economia já tão fragilizada por conta da pandemia do novo coronavírus. Com a escassez de água a indústria é afetada pela falta do líquido para a produção e o custo da energia fica mais alto, impactando no valor final das mercadorias, e nas finanças da população em geral, que sofre com desemprego e queda de renda.
No início deste mês de setembro, o Sistema Cantareira, que é o maior reservatório da Região Metropolitana de São Paulo, operava com 37% de sua capacidade. Sem contar os anos de crise hídrica, é a segunda marca mais baixa dos últimos dez anos, perdendo apenas para o ano de 2018, quando registrou 36,9%. A capacidade do sistema não fica acima de 50% desde 2019, quando atingiu 50,2%. Para efeito de comparação, em 2011, o Sistema Cantareira operava com 81,3% de capacidade. Nos anos de 2014 e 2015, auge da crise hídrica que afetou toda a região, a capacidade estava em -7,8% e -13,8%, respectivamente, operando o volume morto, nome popular da reserva técnica.
Nos últimos 180 dias o sistema Cantareira perdeu 11,90% da sua capacidade máxima, o que corresponde a 11.686 milhões de litros, que são equivalentes a 584.290 caminhões pipa de 20.000 litros.
As cidades que têm represas estão em uma situação mais confortável, mas a tendência é de que a situação piore.
Na Região Metropolitana de Campinas (RMC), Valinhos já adotou o racionamento de água desde o último dia 27. A cidade é dividida em quatro regiões, além do Centro. O abastecimento é interrompido para cada uma das regiões duas vezes por semana. A suspensão do abastecimento dura 18 horas para cada região e é feito das 10h às 4h.
Os demais municípios avaliam a situação de seus mananciais de perto, mas não descartam medidas de restrição se a situação piorar.
De acordo com Ana Ávila, pesquisadora do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri) da Unicamp, desde março de 2020 as chuvas estão ocorrendo em menor quantidade. “Em janeiro e fevereiro do ano passado ainda foram razoáveis, mas estão abaixo da média desde o outono de 2020 e se estende até agora e com grande variedade espacial. Ou seja, chove em um lugar e no outro não. Dá até a falsa sensação de que choveu, mas estamos em redução. Está abaixo em toda a região central e centro-sul”, diz.
Ela aponta que o fator principal da atual situação é o ano com pouca chuva.
“O verão é o grande responsável pela reposição dos mananciais. A Zona de Convergência do Atlântico Sul traz bastante chuva para a nossa região. Ela entra pela região norte e faz um corredor de umidade, mas esse fenômeno está enfraquecido. São vários os fatores que trazem esse período intenso de baixas chuvas. Temos também massas de ar seco que têm persistido muito e com pouca chuva”, explica a pesquisadora.
Ana explica que para que os recursos hídricos sejam afetados dessa forma é preciso um longo período. “Primeiro vem a seca meteorológica, quando tem período sem chuva. Depois vem a seca agrícola, que afeta a agricultura. Depois a seca hidrológica, que afeta os mananciais hídricos”, afirma.
Segundo ela, alguns cientistas defendem que o desmatamento da Amazônia já pode ter impacto no volume das chuvas na nossa região. “Essa Zona de Convergência tem influência da floresta amazônica, que joga umidade para a atmosfera e transporta para o sudeste. Esse aumento do desmatamento já provoca alterações nas chuvas. Já é comprovado que a seca na região do Mato Grosso tem impacto do desmatamento na Amazônia. Agora apontam que aqui também”, diz.
De acordo com a pesquisadora, a esperança de um refresco na situação está no retorno das chuvas na primavera.
“O sistema estava dando possibilidade de chuva para a segunda semana de setembro, lá para o dia 8, mas isso já mudou hoje. Sinal de que ainda está incerta essa chuva. Está mantendo mais seca a região bem onde fica Furnas e o Cantareira”, finaliza.
Professor da Unicamp fala de sistema ainda pouco conhecido
O Prof. Dr. Antonio Carlos Zuffo, da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da Unicamp, especialista em Recursos Hídricos, Energéticos e Ambientais, afirma que estamos sob o efeito de um sistema chamado José Seco. “Esse sistema provoca período mais prolongado de chuvas mais baixas. Esse período tem duração de 30 a 40 anos. Nesse período a precipitação cai em média de 10% a 15%, mas o impacto na produção de água e na vazão dos rios é maior, entre 15% e 30%, na média”, afirma.

O professor aponta que o impacto da diminuição das chuvas é maior na produção de água e na vazão dos rios porque menos chuva penetra no solo. “De tudo que chove, 70% evaporam, inclusive pela transpiração da vegetação. Os outros 30% penetram no solo. Se a chuva vem em menor quantidade, menos vai penetrar no solo também”, aponta.
Segundo ele, entramos nesse período a partir de 2013. “Até 2012, um ano antes do início da crise hídrica, estávamos no José Úmido, que durou de 1976 a 2012. Todos os anos, as marginais de São Paulo alagavam várias vezes por ano, mas agora isso é mais raro, por exemplo. Passados sete anos da última crise a gente está na mesma situação e as enchentes sumiram”, diz.
Ele aponta que pouca gente conhece esse sistema. “Quase ninguém conhece esse fenômeno que foi identificado em 1968. Ele só é verificado em séries históricas disponíveis com mais de 80 anos, mas as disponíveis só têm entre 30 e 50 anos”, explica.
“O corpo técnico não conhece esse fenômeno porque não estuda os artigos científicos. Eu tenho dado bastante aula e palestras sobre esse tema, inclusive para os estudantes. Ninguém estava esperando queda na produção de água. As obras que estavam sendo planejadas para daqui 15 ou 20 anos começam a fazer falta hoje”, diz.
Outro problema, afirma, são as perdas de água nas redes de distribuição das cidades.
“Tem de trocar a rede, ter um percentual de substituição anual, mas é muito caro. No período em que chovia mais, em abundância, a opção no passado era tratar mais água e injetar mais na rede, sabendo que uma parte ia se perder. As taxas de perda de água tratada eram de 10 a 15%, mas foi aumentando. Tem cidades na região com perda de 59%. A média de perda no Estado é de 42%. A eficiência é muito baixa. A solução no passado era injetar mais água, mas se perdia muito”, diz.
Zuffo diz que em São Paulo estão diminuindo a pressão na rede durante a noite até 5h. “Ficam seis horas com baixa pressão e isso diminui muito a perda na rede”, diz. Mas de acordo com ele, o problema é a falta de conhecimento e planejamento. “Ainda estão se espelhando na série histórica do período úmido, que terminou em 2012. De 2013 para cá as chuvas estão menores e vão continuar. Enquanto os gestores não souberem que isso ocorre a gente vai sofrer com racionamentos. Nesse sistema a crise hídrica mais forte é a cada 11 anos e pode durar apenas 1 ano. A próxima deve ser entre 2025 e 2027”, finaliza.