“É a história sendo derrubada na nossa frente”. A frase de Naftaly Dias, 42 anos, ganhou contornos ainda mais tristes, quando o badalar do sino na Basílica Nossa Senhora do Carmo entrou na disputa com o barulho de uma ruidosa escavadeira, ao meio-dia desta quarta-feira (11). A assistente administrativa parou por alguns instantes para registrar em fotos o vazio que se formou na esquina das ruas Barreto Leme e Sacramento.
Mais uma parte da história de Campinas foi ao chão essa semana. O antigo casarão que abrigou por 15 anos um dos mais tradicionais sebos da região central, e também foi morada do professor e biblioteconomista Ernesto Manuel Zink, que dá nome à Biblioteca Municipal de Campinas, em poucos minutos se transformou em escombros. O vazio se soma a outros da região central, cujos pontos históricos passam por processos de desocupação e desconstrução.

A demolição começou na terça-feira, e em questão de horas a paisagem mudou.
“Um Centro abandonado, que está perdendo a sua identidade”, disse com um olhar incrédulo, o maestro Wilson Nascimento, 56. Observando ao redor daquele vácuo que se formou na esquina, Nascimento apontava para outros imóveis abandonados que dentro em breve, acredita, se tornarão novos vazios. “Onde está a revitalização na área central?”, questiona.


O grande sobrado de 12 cômodos, dividido em duas construções, estava fechado há quatro anos. No primeiro mês após a saída do Sebo Casarão, o imóvel foi invadido por pessoas em situação de rua, tornando-se desde então um movimentado ponto para usuários de drogas.
Em decorrência da situação depredatória do local, a Irmandade de Misericórdia de Campinas (provedora do Irmãos Penteado e da Santa Casa), proprietária do terreno, teria sido “pressionada” a demolir o imóvel, disseram comerciantes do entorno.
No entanto, essa informação, bem como o que será construído no local futuramente, a Irmandade de Misericórdia não respondeu ao Hora Campinas. A reportagem entrou em contato com o médico Murillo Almeida, provedor da Santa Casa, mas não obteve retorno.
SEBO CASARÃO
Gerente do Sebo Casarão há quase duas décadas, Luis Otávio Oliveira, 69 anos, relembra a trajetória da loja, que por 15 anos ocupou o casarão naquela esquina. Ali, nos quartos, eram acomodados milimetricamente mais de 100 mil discos de vinil, livros e objetos raros.
O sebo tinha um movimento que rendia lucro de mais de R$ 1,5 mil por dia. Mas, com a pandemia do coronavírus e a consequente quarentena e fechamento dos comércios, arcar com um aluguel de quase R$ 9 mil se tornou insustentável, lembra Oliveira.
“Houve uma tentativa de negociar o valor do aluguel, mas foram categóricos: ‘se não tem condições de pagar, desocupem o prédio’. Trinta dias após sairmos do casarão, ele foi invadido”, relembra o gerente.
Desde então, o sebo funciona no número 994 da rua Barreto Leme. Um local menor, onde funcionava um restaurante, mas que ainda assim acomoda de maneira bem organizada o grande acervo de raridades.
“Paramos de funcionar somente no dia da mudança de prédio, mas nunca fechamos as portas. Com a pandemia trabalhávamos internamente, atendendo os clientes somente com delivery. Hoje, as pessoas começaram a voltar a frequentar a loja, e estamos sobrevivendo”, expõe Oliveira.


CASARÃO
O imóvel que foi ao chão tinha mais de 80 anos e, segundo relatos, era de propriedade da família Zink. Por muitos anos o professor Ernesto Manuel Zink, a esposa Margarida Vosgrau e os três filhos teriam vivido no imóvel.
Ernesto Zink foi professor do curso de Biblioteconomia da PUC-Campinas e deu início à organização da biblioteca da Unicamp. Ele faleceu em 1971, e, no mesmo ano, o então prefeito Orestes Quércia batizou a biblioteca municipal de Campinas com o nome de “Professor Ernesto Manoel Zink’.
A residência na Sacramento com a Barreto Leme continuou como moradia dos filhos de Zink. Com a morte de todos os membros da família, a casa então passou para a Irmandade de Misericórdia de Campinas, atendendo ao pedido de um dos filhos.
Uma das curiosidades do sobrado era que ele possuía um tipo de “quarto secreto”. Quando foi se instalar o sebo, percebeu-se uma parede falsa que, quando aberta, desvendou um pequeno quarto, com um banheiro e uma pequena cozinha. Consultado, um historiador na época chegou à conclusão de que o cômodo foi projetado para abrigar estudantes perseguidos na década de 1960, durante a Ditadura Militar.