Para as famílias das mais de 200 pessoas que morreram há três anos na explosão no porto de Beirute, a maior não-nuclear na história, a única certeza é estarem num labirinto judicial porque os políticos “não querem a verdade”.
Joseph tinha 45 anos quando estava no porto de Beirute no momento da explosão. “Ele era muito especial, generoso”, conta à Lusa, Cecile, irmã de Joseph e parte de um grupo de ativistas composto pelos familiares das vítimas da explosão.
No seu escritório, em Beirute, tem uma fotografia com Joseph, que deixou um filho de seis anos, e os restantes irmãos numa festa.
“Foi uma das vezes que ele se divertiu”, relembra. “Agora estamos sempre tristes e sempre zangados por causa daquilo por que estamos a passar e por causa da maneira com que eles estão a tratar o caso em tribunal… eles estão a obstruir a investigação”, lamenta Cecile.
A investigação sobre a explosão de 4 de Agosto, causada por mais de 2.750 toneladas de nitrato de amônio armazenadas no porto da cidade, está praticamente suspensa desde dezembro de 2021, fruto de interferências, na sua grande maioria de políticos libaneses chamados a depor ou considerados arguidos no caso.
Além das 200 vítimas fatais, 7 mil pessoas ficaram feridas.
Na verdade, as interferências começaram pouco depois da explosão. Em fevereiro de 2021, poucos meses após o incidente, o primeiro juiz responsável pelo caso, Fadi Sawan, acusou o primeiro-ministro Hassan Diab, os dois ministros de Obras Públicas, e o ministro das Finanças, de negligência criminal, após ser revelado que sabiam da presença do químico e do perigo que representava. No entanto, dois dos ministros apresentaram uma queixa contra o magistrado, e o juiz foi afastado do caso.
O segundo e atual juiz, Tarek Bitar, deparou-se rapidamente com o mesmo tipo de obstrução. Nos últimos dois anos, Bitar tentou levantar a imunidade parlamentar de vários deputados para os poder interrogar e chamou a depor vários outras autoridades, incluindo antigos ministros. Em resposta, o juiz foi até agora alvo de dezenas de queixas instauradas por esses mesmos visados.
Segundo a lei libanesa, sempre que uma queixa é instaurada, o processo é suspenso.
Bitar já passou mais tempo a defender-se das queixas do que a trabalhar na investigação. O juiz é continuamente alvo de ameaças, incluindo de oficiais do grupo militante xiita Hezbollah.
A 14 de outubro de 2021, sete pessoas morreram e dezenas ficaram feridas em confrontos armados que começaram à porta do palácio da justiça em Beirute, entre apoiantes do Hezbollah que protestavam contra o juíz Bitar, e grupos do partido cristão Forças Libanesas que marchavam a favor do magistrado.
O tiroteio no bairro de Tayounneh, um dos maiores palcos da guerra civil, acordou memórias e medos do retorno dos confrontos sectários e sangrentos que a cidade viveu.
Até agora, Bitar mostra-se irredutível. Em janeiro deste ano, o juiz tentou avançar com o caso e acusou o primeiro-ministro vigente na altura da explosão, Hassan Diab, e dois outros ministros de homicídio com dolo eventual, e chamou ainda o Procurador-Geral do Líbano, Ghassan Oweidat, para interrogação.
Dois dias depois, a 25 de janeiro, Oueidat não só apresentou um processo contra Tarek Bitar acusando-o de “usurpação de poder” e “rebelião contra a justiça” e proibiu o juiz de sair do país, como ordenou a libertação de todos os 17 suspeitos que estavam detidos desde 2020 como parte da investigação. Entre eles, o diretor de alfândega do porto de Beirute, Badri Daher.
Bitar considerou ilegais as ordens do Procurador-Geral, agora acusado de estar envolvido na explosão.
“Temos visto a classe política a fazer tudo no seu poder para obstruir a justiça, mas também intimidar e atacar as famílias das vítimas para as silenciar”, afirmou à Lusa Aya Mazjoub, vice-diretora regional da Anistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África.
Mazjoub explica que não é “novo” que o aparelho judiciário seja alvo de interferência política, dado que no Líbano é o poder executivo que escolhe os juízes, um processo tradicionalmente “politizado”.
É um ciclo vicioso antigo, que tem impedido ao longo dos anos outras investigações de alto perfil. As atrocidades cometidas durante a guerra civil ou assassinatos de primeiros-ministros continuam sem resposta até hoje.
À medida que o tempo passa, o risco da explosão de Beirute se juntar a estes casos fantasmas, aumenta.
Como quase tudo no Líbano hoje em dia, a existente crise política também já verteu para a crise judiciária. Sem presidente, o governo não tomou posse, e os ministros competentes não podem nomear novos juízes para o tribunal responsável por processar as queixas contra Bitar.
O destino da investigação sobre o que aconteceu há três anos está, portanto, feita refém da crise política que já se estende há mais de um ano.
“Isto apenas reafirma as nossas dúvidas que o Líbano seja capaz de encontrar justiça domesticamente, e sublinha a necessidade para que haja uma missão de investigação internacional”, diz Majzoub.
Deparados com uma investigação interna cujo motor ‘gripou’ há vários meses, as famílias das vítimas têm agora como objetivo a criação de uma investigação internacional e independente, liderada pelas Nações Unidas.
A 7 de março deste ano, 38 países do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas condenaram a “obstrução e interferências repetidas” na investigação interna à explosão de 4 de agosto e instaram as autoridades libanesas “a tomar as medidas necessárias para salvaguardar, legalmente e praticamente, a total independência e imparcialidade do poder judiciário” e para assegurar “uma investigação rápida, independente, parcial, credível e transparente, sobre a explosão”.
Aya Majzoub reconhece que a declaração conjunta não é vinculativa, mas diz que é um sinal que “a comunidade internacional ainda está atenta e reconhece as tentativas repetidas da classe política libanesa de sabotar, obstruir e interferir no curso da investigação doméstica”.
A 13 de junho, as famílias das vítimas celebraram uma pequena vitória, vinda do Reino Unido.
Um tribunal inglês ordenou a empresa britânica Savaro Ltd. a pagar mais de 930 milhões de euros aos familiares das vítimas. O caso foi instaurado pela Ordem dos Advogados de Beirute em Londres em nome das vítimas. A empresa de comércio de químicos foi considerada culpada pela morte, danos pessoais e danos materiais, por ter trazido o contentor de nitrato de amônio para o porto de Beirute em 2013.
Uma investigação do jornalista libanês Firas Hatoum, tinha revelado, em 2021, que a empresa tinha ligações ao regime de Bashar al-Assad, indicando que o destino final do nitrato de amônio era o porto de Beirute e mais tarde a Síria, ao contrário de Moçambique, como se pensou inicialmente.
A decisão inglesa foi celebrada em Beirute, apesar da expectativa das famílias receberem qualquer tipo de compensação seja praticamente nula, já que a Savaro fechou portas após a explosão.
O destino final do fertilizante químico continua uma incógnita. É possível que assim seja para sempre, mas há certos aspectos do incidente que são sabidos: o governo vigente sabia da presença do nitrato de amônio no Porto e do perigo que representava para a população de Beirute.
Porque é que o governo falhou em remover o perigo e evitar a tragédia que mudou a cidade para sempre, é a pergunta que muitos libaneses, como Cecile, querem ver respondida.
“Se eles tivessem evacuado o porto quando o fogo começou, podiam ter evitado tantas mortes…”, disse.
“Nós temos a certeza que eles não querem que se saiba a verdade porque eles estão com medo de alguma coisa, porque eles estão envolvidos nisto. A dignidade de milhões de pessoas está em jogo, porque quando as autoridades libanesas interferem assim na justiça, isto afeta toda a gente”, disse a advogada.
Cecile guarda na memória aquele dia. A mensagem de voz que o irmão, que estava a trabalhar no porto naquele dia, deixou a um colega a perguntar onde estava. A imagem da nuvem cogumelo que tirou a vida a Joseph. A forma como ele nunca a chamava pelo nome, mas sim afetuosamente por ‘akhti’, “minha irmã” em árabe.
“Eu não vou perdoar e nós não vamos esquecer nem perdoá-los, portanto nós vamos continuar a nossa luta contra eles”, assegura Cecile.
(Agência Lusa News)