Hoje, a palavra genocídio remete de imediato à Gaza. Neste mês de setembro, uma comissão de investigação da Organização das Nações Unidas (ONU) afirmou que Israel cometeu genocídio contra palestinos na bíblica e estreita faixa de terra banhada pelo Mar Mediterrâneo.
O novo relatório dessa comissão aponta que há razões suficientes para concluir que 4 dos 5 atos genocidas tipificados pelo direito internacional foram cometidos desde o início da guerra contra o Hamas em 2023: matar membros de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso; causar graves danos físicos e mentais; impor deliberadamente condições destinadas a destruir esse grupo; e impedir nascimentos. O documento da ONU cita declarações de autoridades israelenses e o padrão de conduta das forças de Israel como evidências de uma intenção genocida. Porém, o Ministério das Relações Exteriores de Israel rejeitou o relatório, classificando-o como “distorcido e falso”.
O Exército israelense lançou a ofensiva em Gaza após o ataque sem precedentes do Hamas contra o sul de Israel, em 7 de outubro de 2023, quando cerca de 1.200 pessoas foram mortas e 251 feitas reféns. Desde então, ao menos 64.905 pessoas morreram em ataques israelenses em Gaza, a grande maioria civis, segundo o Ministério da Saúde local, administrado pelo Hamas.
Diante desse necessário debate, torna-se urgente iluminar o papel fundamental das universidades na formação de pesquisadores que investigam o tema, na análise e estudos que garantem o não esquecimento desse lado trágico e desumano da História e, sobretudo, no combate às práticas genocidas.
Da mesma forma que no espaço geopolítico, no qual os dois Estados — Israel e Palestina — devem coexistir em paz, a variedade de teses e linhas de pensamento sobre esse conflito, com toda a sua complexidade social, política e histórica, também precisa dialogar e conviver cientificamente no ambiente de produção do conhecimento. Um exemplo recente dessa solução acadêmica temos na Universidade de São Paulo, que no ano passado inaugurou o Centro de Estudos Palestinos, localizado a poucos metros do Centro de Estudos Judaicos, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Nesta faixa de ideias e reflexões a ciência é ponto pacífico.
Na Argentina, a comunidade científica também faz a sua parte. Em 2007, participei em Buenos Aires do Segundo Encontro Internacional — Análises das Práticas Sociais Genocidas, realizado na Universidad Nacional de Tres de Febrero (UNTREF), ao lado da equipe do LEER – Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação, vinculado ao Departamento de História da USP. Apresentei uma comunicação sobre a pesquisa que desenvolvi durante quatro anos para escrever o meu livro A Travessia da Terra Vermelha – Uma saga dos refugiados judeus no Brasil hoje publicado pela Companhia Editora Nacional. Nesta investigação encontrei fotografias inéditas que revelam a realização de festas nazistas, pouco antes da Segunda Guerra Mundial, em Rolândia, no interior do Paraná.
Além de jovens pesquisadores, o evento também reuniu respeitadas autoridades científicas internacionais. Foi enriquecedor acompanhar suas reflexões sobre iniciativas em andamento no mundo para a prevenção e combate às práticas genocidas, bem como para responsabilizar e punir seus promotores e cúmplices. As conferências enfocaram três dos casos mais emblemáticos da História até então: o Holocausto, os genocídios praticados na Armênia (considerado o primeiro do século XX) e o caso de Ruanda.
Naquela ocasião, Adam Jones, professor da Universidade de British Columbia, no Canadá, já destacava a utilização de imagens de satélite por pesquisadores estadunidenses para documentar evidências de genocídio. O pesquisador reforçou que genocídio e guerra têm pontos diferentes, que não devem ser tratados pelas autoridades da mesma forma.
Ressaltou também que tão perigoso quanto o genocídio físico é o genocídio cultural, destacando que é possível matar sem tirar vidas diretamente, por meio de sanções políticas, pobreza, epidemias como a Aids, e outras formas de extermínio indireto.
Outro palestrante, o médico Gianni Tognoni, investigador do Tribunal Permanente de Los Pueblos — criado em 1979 em Bolonha, com raízes na análise de torturas e repressões ocorridas durante as ditaduras na América Latina —, afirmou que, nos seus 30 anos de existência, o Tribunal analisou mais de 30 casos de povos submetidos a momentos de repressão, tendo a Argentina como um dos primeiros casos estudados.
No fim de seu discurso, a investigadora Perla Sneh, do Centro de Estudos sobre Genocídio da UNTREF, sublinhou a importância da literatura para o aprofundamento dos estudos ali apresentados, citando um fragmento de uma poesia em ídiche, encontrado entre documentos de vítimas do Holocausto: “A natureza é eterna, morrer é temporário”.
Deixamos Buenos Aires acreditando na possibilidade de um mundo mais tolerante e humano.
Não imaginávamos, no entanto, que alguns anos mais tarde a atual tragédia de Gaza monopolizaria os debates dos futuros congressos acadêmicos sobre o crime de genocídio. E hoje me pergunto: quantos poemas inacabados, escritos por palestinos, poderão ser encontrados entre os mortos e sob os escombros de Gaza?
Entre as vítimas recentes dos bombardeios israelenses, estão os poetas palestinos Omar Harb, Heba Zagout e Refaat Alareer. Horas antes de ser morto, este último escreveu versos que parecem atravessar a própria condição palestina: “[…] De modo que uma criança, em algum lugar de Gaza, que tenha o céu no centro do seu olhar, esperando o pai que se foi em chamas, sem se despedir de ninguém, sequer do seu corpo, sequer de si mesmo, que ela veja este seu pássaro voador bem no alto, que pense por um momento que lá voa um anjo, trazendo de volta o amor”.
Lucius de Mello é doutor em Letras pela USP e Sorbonne Université-Paris. Autor da tese A Bíblia segundo Balzac: Deus, o Diabo e os heróis bíblicos em A Comédia Humana. Jornalista, escritor e finalista do Prêmio Jabuti em 2003.