Prestes a lançar sua autobiografia, Hosmany Ramos chega aos 80 anos de vida preso no Complexo Penitenciário de Itajaí, em Santa Catarina. Em dezembro de 2024, ele foi condenado a pouco mais de dez anos de cadeia por tentativa de homicídio e falsa identidade — acusações que ele nega. O novo processo o levou de volta ao cárcere depois ter quitado a dívida com a Justiça em 2016, após passar mais de três décadas na prisão.
Naquela época, a liberdade parecia ser definitiva. Hosmany até viajou à Noruega para rever o único filho, além do neto que ainda não conhecia. Passou o Natal em família. Ligou-me para contar a novidade e fizemos uma reportagem exclusiva. Depois de retornar ao Brasil, virou youtuber e retomou sua carreira de cirurgião plástico. Seus dias de cidadão livre, no entanto, duraram apenas oito anos.
Tendo se tornado escritor em uma penitenciária de segurança máxima, Hosmany disse certa vez: “A Literatura é a arte do sofrimento”. Parecia convencido de compartilhar o destino de grandes escritores que também passaram pela prisão: “Graciliano Ramos, Jean Genet, Oscar Wilde, Dostoievski, Máximo Gorki… Nós temos um cordão umbilical semelhante, ou seja, a Literatura também do sofrimento prisional.”
Excluindo a autobiografia, ainda não publicada, Hosmany escreveu oito livros na cadeia. Quatro deles foram publicados pela editora Geração Editorial. O mais recente, lançado em maio de 2009, é O Goleador. Um romance no qual ele conta o submundo da máfia do futebol.
Proibido de usar computador e máquina de escrever, criou contos, novelas e romances à mão. Ele me disse numa das entrevistas: “Na cela que eu moro não tem mesa, não tem absolutamente nada… Tenho que colocar no colo e escrever, uma dificuldade enorme… Mesmo assim eu necessito fazer isso, senão eu enlouqueço”.

O meu livro de contos Um violino para os Gatos me abriu a porta para o mundo prisional de Hosmany Ramos. Publicado pela extinta Maltese, em 1995, o volume reúne oito narrativas e recebeu uma generosa resenha de Bernardo Ajzenberg na Folha de S. Paulo. Deixei um exemplar na portaria do Presídio de Avaré, no interior paulista, com um pedido de entrevista dentro.
Uma semana depois, fui informado de que Hosmany me receberia. Na época, eu era repórter da TV Globo, e a ideia era fazer uma reportagem sobre a rotina do “médico bandido” no cárcere. Ele tornara-se pintor e ficcionista. E, naqueles dias, nem mesmo Marília Gabriela tinha conseguido mostrá-lo pintando e escrevendo na prisão. “Só aceitei gravar porque você também é escritor e gostei do que você escreveu”, ele foi logo dizendo. Levei minha melhor caneta para entrevistar o ilustre presidiário. Uma Montblanc preta e dourada que acabara de ganhar de um amigo recém-chegado de Viena. Bom conhecedor do mundo do luxo, Hosmany ficou o tempo todo paquerando a joia que pingava no bolso do meu paletó uma gota de neve falsa, réplica das geladas montanhas alpinas. Cheguei até a suspeitar que os olhos hosmanyanos tentaram me pedir para deixar o metal banhado a ouro com ele. Mas fingi não entender a mensagem e toquei a entrevista. Claro que a caneta saiu comigo devidamente fiscalizada pela segurança.
Ganhei duas telas pintadas por Hosmany. Ainda tenho as duas em casa. Depois desse encontro, recebi várias cartas dele e fui conhecer o seu grande amor do passado, a jornalista e escritora Marisa Raja Gabaglia, que morreu em 2003, vítima de leucemia, aos 61 anos. Quase consegui promover um encontro entre os dois na penitenciária. Seria a primeira vez que a televisão mostraria Marisa visitando Hosmany na prisão. Ela me dizia: “Nós dois juntos formamos o casal mais inteligente do Brasil. A versão canarinho da Simone de Beauvoir e do Jean-Paul Sartre, menino”. Mas sempre recusou minha proposta.
A autobiografia que está no prelo traz a seguinte dedicatória: “Para Marisa, meu amor”. A amada ganha longas páginas nas quais Hosmany revela: “eu acredito que eu paguei por amar a pessoa errada. Porque eu me apaixonei por uma pessoa que tinha um relacionamento com alguém muito poderoso e você sabe que no Brasil as pessoas poderosas mandam no país”.

Sei que Marisa e Hosmany me citaram várias vezes nas cartas que trocavam. Ele concordou que gravássemos a visita dela. Mas o máximo que consegui de Marisa foi uma longa entrevista em seu apartamento em São Paulo. Sempre com um copo de uísque nas mãos, contou-me quase tudo sobre o amor bandido do passado, as loucuras que chegou a fazer por Hosmany. A reportagem, no entanto, nunca foi exibida pela TV Globo, emissora na qual Marisa trabalhou como repórter e apresentadora durante muitos anos.
Hosmany Ramos conheceu Marisa em pleno auge das discotecas, quando ainda frequentava as colunas de Ibrahim Sued. Jovem cirurgião plástico, nascido no interior de Minas Gerais, ele chegou a integrar a equipe de Ivo Pitanguy. Mas, seis meses depois que o namoro começou, o mundo do galã caiu. Acusado de contrabando, roubo, assassinato e tráfico de drogas, foi preso em 1981 e condenado a 21 anos e 4 meses de cadeia. Passou por várias penitenciárias.
Após a nossa primeira conversa em Avaré, fui revê-lo em Rondônia, quando estava foragido. O advogado de Hosmany ligou direto para o meu celular para oferecer a entrevista exclusiva. Naquela noite eu estava numa festa de confraternização da TV Globo na casa do gerente de jornalismo. Ali mesmo acertamos tudo. A Globo fretou um avião Cessna Citation, contratou um segurança e horas depois lá fomos eu e toda a equipe para Ji- Paraná.
Cheguei ao seu esconderijo antes que a polícia. Corri risco de vida, de ser sequestrado: “se for preso no momento da entrevista tenho quem te apague”, me ameaçou durante as negociações para o nosso encontro. Porém, tudo deu certo no final. Consegui um dos furos jornalísticos mais importantes da minha carreira. Na época, a reportagem foi exibida no Fantástico e bateu mais de 40 pontos de audiência. Dias depois, Hosmany acabou se envolvendo num sequestro, foi preso novamente e terminou condenado a mais 30 anos de prisão.
Em 2000, fiz uma nova reportagem com ele sobre sua entrada para o seleto clube de escritores que tem como integrantes autores do porte de Jean-Paul Sartre, Jorge Amado e Albert Camus. Hosmany acabara de ser publicado pela editora francesa Gallimard. Naquele ano, ele estava preso na Casa de Custódia de Taubaté, um presídio de segurança máxima conhecido como Piranhão, no qual estavam presos os criminosos mais perigosos do Brasil, como Pedrinho Matador e Francisco Assis Pereira, o Maníaco do Parque. Hosmany era vizinho deles quando tocou na edição mais luxuosa de seu Marginália.

Fui o primeiro jornalista brasileiro a receber direto de Paris um exemplar do livro publicado na série Noire, com tradução de Michel Goldman. Marginália, versado para o francês com o título Marginalia, sem acento, foi escrito por Hosmany em 1986. São 14 contos e uma novela: “Um segmento do livro é autobiográfico, mostra meu convívio com a sociedade carioca, a boate Hipopótamos e a outra vida que encontrei na prisão… O leitor que compra o meu livro, no caso Marginália, ele se prepare, que ele vai entrar numa montanha russa… onde vai subir e descer o tempo todo”, me respondeu o autor da Gallimard preso em Taubaté.
A editora francesa descobriu o livro de Hosmany num sebo em São Paulo. Segundo o editor, foi a secura do texto dele que levou a Gallimard a pagar cinco mil francos, na época pouco mais de três mil reais, pelos direitos autorais. A primeira edição saiu com 6 mil exemplares. Hosmany Ramos, até aquele momento, era o décimo sexto autor brasileiro publicado pela Gallimard. Nem mesmo Machado de Assis recebeu tal honra literária.
“Estava na Penitenciária de Avaré e recebi a carta no dia 20 de dezembro. Quando li era a proposta da Gallimard dizendo que haviam lido o meu livro e estavam interessados em fazer a edição francesa… Foi uma surpresa enorme, porque todos nós sabemos o que é ser publicado pela Gallimard… É uma editora seletiva…”. Hosmany fez da literatura sua tábua de salvação: “A palavra é hoje o cordão umbilical que me liga à vida. O dia em que não escrevo quinhentas palavras fico mal”.
E para encerrar o prefácio que ele mesmo fez para a publicação francesa de Marginália, Hosmany Ramos escreve: “Marginalia relata fragmentos da minha experiência com pessoas reais, num mundo de medo e solidão […] Aqui diante da minha cela há uma árvore esplêndida. Um ipê roxo. No momento de soltar as suas sementes ele as solta. O dever de quem escreve é o de soltar as palavras como a árvore solta os grãos semeando o campo da imaginação e da intuição sem desejar ser genial, formidável, o melhor…”
Além de Marginália, o romance Pavilhão 9 – paixão e morte no Carandiru também foi traduzido pela Gallimard e publicado na França em 2005 com o título Pavillon 9: Chemin de Croix à Carandiru. Aguardemos agora a chegada da sua polêmica autobiografia ainda sem data de lançamento. Obra na qual Hosmany Ramos promete contar histórias nunca antes reveladas do seu passado na alta sociedade e também na prisão.
Os livros que Hosmany Ramos escreveu:
Olho Mágico – Ed. Carthago – 1980
Síndrome da Violência – Ed. Seqüência – 1984
Queima de arquivo – Ed. Seqüência – 1985
Marginália – Ed. Clube do Livro –1988; pela Gallimard – 2000
Pavilhão 9 – Ed. Geração Editorial – 2001; pela Gallimard – 2005
Seqüestro Sangrento – Ed. Geração Editorial – 2002
Delitos Obsessivos – Ed. Geração Editorial – 2005
O Goleador – Ed. Geração Editorial – 2009
Lucius de Mello é doutor em Letras pela USP e Sorbonne Université-Paris. Autor da tese A Bíblia segundo Balzac: Deus, o Diabo e os heróis bíblicos em A Comédia Humana. Jornalista, escritor e finalista do Prêmio Jabuti em 2003.











